Mães, independentes e da estrada

Marya Solange
Marya Solange | Foto: Arquivo pessoal

Conheça a história das mães caminhoneiras que rodam pelo país afora e lutam para conciliar a dupla jornada. Brasil ainda carece de legislação que assegure direitos de mães caminhoneiras autônomas. 

Maio é um mês de muitas comemorações, mas também marca uma data muito esperada pelas famílias brasileiras: o Dia das Mães. É o momento de lembrar e promover os direitos de mulheres de todo o Brasil que batalham para educar e manter seus filhos, que sofrem com a falta de reconhecimento, e que muitas vezes não recebem a ajuda necessária de companheiros que se recusam a reconhecer os filhos. É também dia de homenagens, abraços, carinhos e muito amor.

Se até pouco tempo atrás a mulher tinha seu papel reduzido à esfera doméstica, com a ampliação dos direitos e o aumento da participação no mercado de trabalho, a mulher brasileira tomou as ruas e começou a ocupar espaços antes dominados pelos homens. Chegou à construção civil, aos cargos de liderança, às indústrias e às boleias dos caminhões.

Nos dias de hoje, não existe um número oficial que possa precisar a quantidade de mulheres inseridas no setor do transporte de cargas em qualquer que seja a operação logística. Mas é frequente vermos mulheres motoristas, embarcadoras, no comando de transportadoras e na parte técnica. O que era antes um ambiente masculino, hoje se pintou com a diversidade de gênero.

Grande parte das caminhoneiras brasileiras acumulam também a função de mães. Entre viagens e paradas, essas mulheres dividem o tempo entre o trabalho e as obrigações domésticas, de educação e convivência com os filhos.

É o caso de Clari Rodrigues, caminhoneira há 9 anos e motorista do Volvo FH460. Moradora da cidade de Lajeado, no Rio Grande do Sul e com 35 anos, ela puxa cimento até Curitiba e faz a rota toda semana como motorista de uma transportadora.

Clari começou a profissão com seu ex-esposo que a incentivou e a ensinou. “Acabei pegando o jeito e vi que sabia do assunto. Comecei a trabalhar e estou nisso até hoje”, declarou. Desde o começo, a caminhoneira se sente orgulhosa por poder trabalhar e cumprir sua jornada com a mesma eficiência e competência que os homens.

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Clari Rodrigues | Foto: Arquivo pessoal

A motorista de Lajeado tem três filhos, a mais velha de 23 anos, um rapaz de 20 e outro de 19. “Eles moram com o pai, aí quando eu estou voltando pra cidade já comunico todo mundo para poder ficar com eles. A menina já é casada, mas chegando a gente já se encontra”, destacou Clari sobre a sua rotina.

“Eu fico a semana toda fora, às vezes chego a ficar o mês todo. Eu sinto muita falta de todos eles. Nossa, é muita saudade! Eu nunca fui cobrada pelos outros, mas eles me cobram às vezes porque queriam que eu ficasse mais perto. Então eu sempre tento conciliar tudo isso”, afirmou.

Quem também acumula as funções de caminhoneira e mãe é Marya Solange, natural de Pombos, Pernambuco, com 44 anos, sendo 22 deles de estrada. O currículo dela é de dar inveja a qualquer caminhoneiro que se preze: “Eu já dirigi 1113 truck, 4030, cavalinho, de tudo. Já peguei vários tipos de caminhões, rodei 23 estados e já fui até o Paraguai.”, declarou.
De voz firme e pensamento rápido, Marya mostrou que é uma mulher extremamente adaptável. Já carregou cerveja, implemento agrícola, suco, dentre muitas outras cargas. O começo na profissão aconteceu na sua cidade natal, quando ela ainda tinha 14 ou 15 anos.

“A nossa turminha estava brincando e um disse que queria ser doutor, o outro médico. E acabou que eu escolhi ser caminhoneira. Todo mundo tirou sarro porque minha família sempre foi muito humilde, então nunca que eu ia dirigir um caminhão”, afirmou.

O destino, no entanto, mudou as regras do jogo. Com 17 anos mudou-se para São Paulo com seu pai e aprendeu a dirigir um fusquinha, tirando a habilitação para caminhão pouco tempo depois. No começo, Marya também trabalhava de empregada doméstica na capital paulista para ajudar no orçamento da casa.

Depois de trabalhar na boleia durante mais de 20 anos, Marya hoje corta lenha e distribui para pizzarias e outros estabelecimentos da região. A mudança na profissão foi provocada, sobretudo, pela presença dos dois filhos, uma garota de 19 anos e um rapaz quatro anos mais jovem.

Marya Solange
Marya Solange | Foto: Arquivo pessoal

“Sempre fui da opinião de que filho meu é filho meu. Eu sou separada e meus filhos sempre ficaram com minha mãe pra eu poder trabalhar. Eu tinha que sustentar a casa. Só que minha filha foi ficando adolescente, meu pai enfartou. Nesse momento da vida eu já tinha conseguido comprar minha casinha, meu carrinho e achei que era hora de cuidar dos meus filhos”, contou.

A caminhoneira resolveu então assumir os negócios do pai. Há quatro anos, Marya corta madeira e presta serviço também para fazendas. “Esse servicinho é bem pesado, eu tenho que ser mais bruta do que antes. Eu corto madeira, dirijo meu trator e cuido dos meus filhos. De vez em quando ainda aparecem umas empresas me chamando de volta, e dá uma saudade danada!”

Marya afirma sempre ter gostado muito de caminhão e que pretende voltar para as estradas quando seu filho mais novo completar 18 anos. Ao longo da sua carreira profissional como caminhoneira, afirmou ter trabalhado muito para conseguir passar o final de semana com os filhos, durante o período de férias escolares, pagava um seguro para que eles pudessem acompanha-la em suas viagens.

“A companhia dos meus filhos dinheiro nenhum no mundo paga. Eu já rodei muito a noite inteira pra poder ficar com eles. Uma época eu morava em Ponta Grossa, no Paraná, eu viajava pro Sul, de lá eu carregava trator e geralmente vinha com duas ou três entregas para o Espírito Santo e Bahia. Lá eu carregava fruta e voltava para Curitiba. Eu descarregava e ia pra casa no sábado de manhã. Então eu fazia um percurso de quase 5 mil quilômetros em uma semana pra poder ficar em casa com meus filhos.”.

“Já sofri muito preconceito e já vi muita mulher sofrer preconceito na estrada”

Assim como outras mulheres que atuam em profissões majoritariamente masculinas, as caminhoneiras sofrem com o preconceito e com as dificuldades ao longo do caminho. A frase acima, dita por Marya Solange, é um retrato da atual sociedade brasileira, que muitas vezes resiste à existência de mulheres em determinadas posições no mercado de trabalho.

A caminhoneira Clari Rodrigues também denunciou que é comum ver expressões de machismo na rotina de trabalho, o que assusta no princípio, mas que depois acaba sendo algo que passa batido.

[quote]“Uma coisa incrível que a gente nota é que o erro da mulher nunca é aceito, e o dos homens ninguém enxerga. Eles sempre querem a nossa perfeição, nós temos que provar que somos capazes. Mas eu me sinto extremamente orgulhosa quando eu consigo mostrar que nós também podemos trabalhar como eles”, declarou.[/quote]

Além disso, as mulheres convivem diariamente com situações de riscos das mais diversas. Além de livramentos de acidentes, tem que dirigir em estradas ruins e sem infraestrutura nos pontos de parada e postos de combustíveis.

Marya Solange afirma que há uma discrepância entre as dificuldades. Enquanto que na região sul as estradas possuem mais infraestrutura, em outros estados às vezes não se encontra nem banheiro para mulheres. “Comigo já aconteceu também de um caminhão me dar passagem e quando eu fui ultrapassar ele viu que era uma mulher e me fechou”, declarou.

Bebê a bordo, ou melhor, na boleia!

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Francine Rebelo| Foto: Arquivo pessoal

Não é de hoje que conhecemos Francine Rebelo, jovem nascida e criada em Jacareí. Amiga de alguns anos ela já contribuiu com o Jornal Chico da Boleia falando sobre a sua monografia, realizada para concluir o curso de Ciências Sociais. A pesquisa foi feita junto de mulheres caminhoneiras do Brasil, com as quais Francine viajou para outros estados e pode conhecer de perto a rotina da profissão.

E não é que Francine se encantou de vez pelas estradas? Encarando a possibilidade de ser motorista de caminhão como uma forma de percorrer o Brasil e também ganhando para isso, Francine e seu companheiro, o cientista político Luís Antônio, resolveram subir na boleia de um caminhão e rodar pelo tapete negro.

Desde agosto do ano passado, ambos iniciaram seu sonho, realizando os objetivos de conhecer as capitais do norte como Porto Velho, Belém, bem como outros locais como Bahia, Rio Grande do Sul, Paraná.

A empreitada dos jovens deu origem, inclusive, a um blog, no qual eles contam sobre suas viagens. Chamado de “Estrada Vamos, Estrada Somos”, o espaço é destinado a falar sobre os lugares e também as pessoas que eles conheceram ao longo dos últimos dez meses.

Recentemente, porém, Francine descobriu que está grávida e os planos de continuar na estrada começaram a ser revistos. “Eu só consigo pensar nisso agora. E a outra questão fundamental é o número de casos de Zika pelo país. Como a ideia era viajar o país inteiro, o risco de contrair a doença me prejudicou muito, porque eu não consigo mais aceitar viagens para determinados locais”, afirmou. Além disso, Francine relatou que a falta de infraestrutura de alguns lugares permite focos do mosquito que transmite a doença.

Nas últimas semanas, o casal tem viajado mais por São Paulo, saindo e voltando de Jacareí e entregando em Santos, Campinas e outras cidades. “Essas rotas mais curtas são mais cansativas, porque saímos pela madrugada e voltamos no final da tarde, pegamos muito trânsito e temos que carregar e descarregar o caminhão, coisa que o médico impediu que eu fizesse”, explicou.

Além disso, as mulheres grávidas sentem um cansaço bastante excessivo, tendo, inclusive, que tomar remédio para diminuir o enjoo, o que aumenta a sonolência e pode ser extremamente perigoso para quem está atrás do volante. Esse também foi um ponto que prejudicou a caminhoneira. Francine, portanto, tomou a decisão de deixar as estradas por enquanto para cuidar da gravidez.

No entanto, a jovem caminhoneira destacou que essa não é uma tarefa impossível de ser realizada, já que muitas mulheres continuam trabalhando nas estradas mesmo estando grávidas. Ainda que seja uma rotina extremamente exaustiva, é possível conciliar a maternidade com a profissão.

“Como o meu projeto sempre foi realizar viagens de longa distância, as circunstâncias mudaram e eu tive que me adaptar. Eu adorei a rotina de motorista, de viajar trabalhando, eu acho que a remuneração é baixa, mas não é das mais injustas. Não descarto a possibilidade de voltar para as estradas.”

Rodar por grande parte do país, também mostrou o quanto o machismo está presente nas estradas e também na rotina da profissão de caminhoneira. “Você roda o dia todo e tem dia que não vê nenhuma mulher dirigindo caminhão, isso é, no mínimo, sintomático”, destacou.

Por outro lado, Francine diz compreender o afastamento das mulheres da profissão, já que é preciso enfrentar muitas situações, desde o machismo cotidiano, até o machismo estrutural. “É você chegar num posto e não encontrar uma mulher, é você ir num banheiro que não tem higiene, é ter que descer do caminhão pra fazer xixi na estrada.”

[quote]“Você chega pra carregar sozinha, você ouve piada o tempo inteiro. Isso é muito cansativo. O cara está com o caminhão estacionado na frente do seu, não tem como você sair, e você pede educadamente para ele retirar o caminhão dele. Aí ele responde que vai tirar, mas dizendo: ah vou fazer, mas só porque é mulher”, conta a jovem motorista.[/quote]

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, Francine afirma que lugar de mulher é na boleia, ou onde ela quiser. “A gente precisa ocupar todos os espaços. É uma profissão possível, interessante, que abre muitas portas para todo mundo. É preciso superar o medo e o preconceito, e exigir da sociedade, das empresas e das instituições públicas que assegurem nossos direitos.”, concluiu.

A caminhoneira acredita que as mulheres que vivem nesta profissão são, sobretudo, extremamente corajosas e competentes, demonstrando diariamente uma capacidade incrível de superar dificuldades. Juntamente com elas, Francine espera o dia em que as mulheres possam ser maioria na profissão.
Sejam lá quais forem os rumos que aguardam a vida de Francine, Antônio e do filho ou filha que vem por aí, as estradas do Brasil serão sempre um lugar de acolhimento caso essa família decida retornar ao tapete negro.

Brasil carece de legislação para assegurar direitos de mães caminhoneiras autônomas

Atualmente no Brasil não existe nenhuma legislação específica que regule as atividades das mães caminhoneiras autônomas. O regimento que controla a rotina de trabalho dos motoristas autônomos, sejam eles homens ou mulheres, é a Lei 13.103/2015, que substituiu a antiga Lei 12.619, promulgada em 2012. O texto da Lei atual tem como objetivo disciplinar a jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista profissional, tocando na importante questão do direito trabalhista dos autônomos.
Neste quesito, no entanto, a atual lei foi bastante questionada quando promulgada, já que, segundo alguns especialistas, fere pilares de proteção do trabalhador ao permitir a volta do pagamento por comissão, a flexibilização da jornada diária e do descanso obrigatório.

Vale destacar que esta Lei não toca na questão da proteção trabalhista de mulheres caminhoneiras grávidas ou mães. Não é prevista, portanto, licença maternidade, afastamento ou qualquer direito social para essa categoria em específico.

Por outro lado, as mulheres caminhoneiras mães ou grávidas que trabalham para transportadoras gozam dos direitos sociais garantidos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), já que trabalham sob este regimento.

De acordo com o advogado Dr. Tiago Santi Lauri, se a caminhoneira autônoma tiver recolhido seu INSS, ela pode receber alguns auxílios. “Nesses casos, a caminhoneira autônoma tem a qualidade de assegurada e pode receber o auxilio maternidade ao dar a luz, além de ter o direito de ser afastada caso haja recomendação médica”, explicou.

Santi Lauri também detalhou que esse afastamento antes do parto é remunerado pelo INSS. No entanto, o auxilio é concedido num prazo determinado de 120 dias.

Excluídos esses casos, as mães caminhoneiras autônomas não são contempladas dentro da legislação que deveria assegurar os seus direitos e ampará-las durante a gravidez e amamentação. Que o texto da lei que trata do exercício do motorista profissional no Brasil não tenha contemplado essas questões pode ser o reflexo de uma sociedade que ainda não abriu os olhos para a entrada das mulheres em todos os espaços do mercado de trabalho, inclusive nas estradas brasileiras.

Larissa Jacheta Riberti para Chico da Boleia

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