Por Larissa Jacheta Riberti
Os acontecimentos de 31 de março e de 1o de abril de 1964 marcaram a história do Brasil. Naquele contexto, a deposição do presidente democraticamente eleito João Goulart por um grupo militar, financiado por empresários e apoiado por parte da população, da imprensa e do clero abririam as portas para mais de vinte anos de regime civil- militar no país.
A queda de Jango – que defendia as Reformas de Base, a Reforma Agrária e mantinha relações com os governos comunistas de Cuba e da China – foi acompanhada de uma intensa propaganda anticomunista que se expressava nos jornais impressos, revistas, folhetos e pronunciamentos. Em tempos de Guerra Fria, todos os mecanismos repressivos e de perseguição foram utilizados para minar a suposta “ameaça comunista” não só no Brasil, mas em toda América Latina.
Na prática, essa ameaça comunista era apenas um pretexto utilizado pelos Estados Unidos não só para justificar as arbitrariedades impostas aos seus países vizinhos, como para ampliar sua influência capitalista num mundo dividido ideologicamente.
Logo nos primeiros meses, o regime militar já mostrava seu modus operandi. Fechamento de partidos, cassação de mandatos, perseguição a militantes de esquerda e vigilância de espaços de atuação, como os sindicatos, agremiações e universidades. Ao longo dos anos, as práticas já impostas em 1964 passaram não só por um incremento da repressão e da violência, como também por um respaldo legal.
Os chamados Atos Institucionais davam aos governos militares capacidade cada vez mais ampla de atuação. O Ato Institucional n. 5 (AI-5) de 1968, por exemplo, concedia ao Presidente da República, plena autonomia para governar o país sem as limitações previstas na Constituição. Sendo assim, o presidente poderia atuar de acordo com os interesses dos grupos que o apoiavam e de forma arbitrária sem ser impedido. As atividades do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores foram suspensas. Ou seja, todo nosso sistema legislativo foi impedido de atuar.
O Art. 4 do AI-5 ainda previa a suspensão do direito de votar e ser votado nas eleições sindicais, proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; liberdade vigiada; além de determinações que endureciam a censura.
Neste contexto, o país viveu também a radicalização da esquerda. Diversas foram as organizações que optaram pela luta armada. Dentre elas, podemos citar a Guerrilha do Araguaia, a Var-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) e a Ação Libertadora Nacional (ALN).
Não tiveram, no entanto, um destino promissor, apesar de atuaram pressionando o regime e expondo suas deficiências. Com a Doutrina de Segurança Nacional sendo aplicada através dos sistemas de vigilância e da atuação de organismos como o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), o SNI (Serviço Nacional de Informações) e os operativos das Forças Armadas, os militantes de esquerda foram caindo pouco a pouco.
Exercitando a memória, relembremos dois casos desta repressão. O primeiro é a morte de Carlos Marighella, baiano, nascido em Salvador, que foi militante do Partido Comunista Brasileiro, pelo qual foi deputado. Sua trajetória, no entanto, foi encerrada em 4 de novembro de 1969, quando uma emboscada organizada por agentes de segurança do estado resultou no seu assassinato.
Fundador do grupo armado Ação Libertadora Nacional (ALN), Marighella atuava na clandestinidade ao lado de seus companheiros e contra as repressões impostas pelo regime militar. Em setembro de 1969, a ALN participou do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em uma ação conjunta com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Em troca da liberação do embaixador, pedia-se a libertação de presos políticos o exílio dos mesmos em outros países.
Outro caso bastante emblemático sobre esse período é o de Vladimir Herzog. Jornalista da TV Cultura, o também militante do Partido Comunista Brasileiro foi chamado para depor no DOI-CODI sobre suas relações com o Partido em 24 de outubro de 1975. Vladimir foi preso com mais dois jornalistas, George Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder.
Morreu em decorrência das torturas que sofreu. No dia seguinte a grande imprensa noticiou que o jornalista da TV Cultura havia se suicidado nas instalações do DOI-CODI. Uma foto na qual ele aparece com um cinto em volta do pescoço foi amplamente pelos veículos de comunicação. Foi preciso o final do regime militar para que se soubesse que a imagem tinha sido manipulada e que Herzog fora assassinado. Entre os companheiros de Herzog e os que lutaram contra a ditadura sabia-se, no entanto, que a manipulação da imagem era apenas uma das estratégias do governo contra a militância de esquerda.
Marighella e Herzog são dois dos inúmeros casos de assassinato, tortura e desaparecimento forçado, registrados durante o período militar. Atualmente, a Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012 e que desempenhará atividades até o final deste ano, busca reconstruir a história de muitos casos ainda não esclarecidos. Além da CNV, Comissões Estaduais também trabalham para esclarecer esse passado de autoritarismo e repressão.
Em recente audiência, a CNV declarou que conseguiu fazer um levantamento sobre as operações que eram realizadas na chamada “Casa da Morte de Petrópolis”, Centro de Informações do Exército, que funcionou no início dos anos 1970. Na ocasião, o coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, que foi chamado para depor, contou em detalhes como o corpo dos presos era mutilado para que eles não fossem identificados. O coronel afirmou ter desaparecido com o corpo do ex-deputado Rubens Paiva. “Quantos morreram?”, perguntou a Comissão. “Tantos quanto foram necessários.”, declarou Malhães.
O regime militar acabou em 1985 e todo o processo de transição envolveu inúmeras disputas políticas e pressões de movimentos como os pela “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” do Comitê Brasileiro pela Anistia do final da década de 1970. Na prática, a transição foi um processo pactuado. A chamada abertura “lenta, gradual e segura” iniciada ainda no governo de Ernesto Geisel, da década de 1970, envolveu concessões e negociações entre o setor militar e os progressistas que, naquele momento, representavam o interesse dos que pediam pela abertura.
As punições para os crimes cometidos pelos agentes da ditadura também continuaram sem acontecer. A Lei da Anistia de 1979, considerada por juristas como Celso Lafer como uma “auto anistia” dos militares, impede que processos jurídicos sejam levados a cabo para investigar as acusações que recaem sobre membros das Forças Armadas e dos sistemas de vigilância do Regime militar. Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal declarou como válida a Lei da Anistia Brasileira em 2010 após a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), colocada por parte da Ordem dos Advogados do Brasil em 2008 e pedindo a revisão da Lei.
Em seu artigo “Justiça, História e Memória: reflexões sobre a Comissão da Verdade”, Lafer acredita que a Lei da Anistia foi responsável por impor um esquecimento das atrocidades cometidas pelo regime. O processo de abertura política iniciado no fim do regime não foi, como já citado acima, uma ruptura com as antigas bases políticas, se não uma reforma gradualista que não impediu que antigos militares continuassem atuando, mesmo após o fim da ditadura, em questões fundamentais da nossa sociedade.
Por outro lado, Celso Lafer acredita que a Comissão Nacional da Verdade tem justamente a função de se contrapor a esse esquecimento comandado pela Anistia. “Representa uma afirmação de um direito de titularidade coletiva da cidadania brasileira à memória da verdade factual de graves violações dos direitos humanos”, afirma o jurista.
O período militar também deixou marcas na economia. Ao contrário da memória equivocada de boa parte da população brasileira que insiste em crer no “milagre econômico”, a ditadura resultou num aumento expressivo da inflação que, em 1983, chegou a ser de 239%. Somou-se a isso um endividamento externo de quase U$100 bilhões de dólares no final do regime.
Os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e das Comissões Estaduais tem buscado expor o passado autoritário da ditadura militar brasileira – é verdade que nem sempre com sucesso. Além disso, alguns organismos de direitos humanos e grupos de familiares de mortos e desaparecidos têm atuado em conjunto para auxiliar os trabalhos das Comissões.
Em meio a todo esse contexto no qual as reivindicações por memória, verdade e justiça, venham a tona para esclarecer os crimes e violações dos agentes da ditadura militar, o Deputado Jair Bolsonaro (PP) apresentou um pedido junto à Câmara para que uma solenidade comemorasse o Golpe Militar. Conhecido por seu reacionarismo, por sua campanha de apoio à volta da ditadura e por suas declarações racistas, homofóbicas e preconceituosas, Jair Bolsonaro teve que se contentar com a não aceitação de seu pedido.
O Presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), anunciou a rejeição do pedido de Bolsonaro e a aceitação do pedido de Luiza Erundina (PSB-SP) para que houvesse uma celebração de “civis e militares que resistiram à ditadura”.
Para Jair Bolsonaro, seus seguidores e uma parcela dos membros do Exército, o Golpe de 1964 deve ser chamado de “revolução”. Historiadores, boa parte da imprensa e os militantes que resistiram àquela época, acreditam que tal colocação é antiética e desrespeita a dor de familiares de vítimas e dos sobreviventes daquele regime. É equivocado chamar de “revolução” um golpe militar que impôs o autoritarismo, a censura, e que violou os mais diversos direitos humanos e sociais da população brasileira. Por outro lado, é preciso rememorar a luta de diversas pessoas que morreram em nome da redemocratização do país.
Na comunidade acadêmica e entre os mais interessados neste assunto, espera-se que os trabalhos da Comissão possam não somente expor um passado ainda obscurecido na memória de muitos, mas também promover ações para que se relembre a resistência de grupos que lutaram contra a repressão e ajudaram a construção de uma nova ordem democrática. Além disso, o que se espera desses 50 anos do Golpe é que eles possam suscitar discussões e tocar a consciência dos mais reacionários, como Jair Bolsonaro e seus seguidores, para que eles entendam a luta contra o regime militar como algo legítimo e necessário para a derrocada daquele governo tão opressor.
É preciso rememorar e celebrar a trajetória de militantes e organizações que resistiram ao Golpe de 1964 e às arbitrariedades cometidas naquele contexto através da verdade, da memória e da justiça.
Leia mais sobre o assunto:
TELES, Edson. “Democracia de efeito moral”. Artigo disponível no link: http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/edson-teles/
ARAÚJO, Maria Paula [et ali]. Ditadura militar e democracia no Brasil: história, imagem e testemunho. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. O livro pode ser baixado através do link: http://www.historia.ufrj.br/pdfs/2013/livro_ditadura_militar.pdf
Documentário: “Hércules 56”, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=xxPNQfNpkOo
Filme: “Batismo de Sangue” (2007), direção de Helvécio Ratton.
Larissa Jacheta Riberti é mestra pelo Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é aluna do curso de doutorado no mesmo programa pesquisando temas como justiça de transição, direitos humanos, movimento armado e democracia no México.
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