O empresário de transporte rodoviário de cargas assume, no exercício de sua atividade, riscos muito significativos, seja quanto à incolumidade da carga transportada, seja no que diz respeito a possíveis prejuízos a terceiros ou ao meio ambiente. Por isso mesmo é que costumo dizer que o Seguro é “insumo essencial” do Transporte. Os pioneiros, das décadas de 50 e 60 do século passado – quando a industrialização e o rodoviarismo davam os seus primeiros passos – já percebiam isso com clareza. Há registros de reivindicações daquela época de um seguro que fosse obrigatório para gerar escala – ou “massa”, como se dizia – e, assim, assegurar tarifas módicas. A Associação Nacional do Transporte de Cargas – NTC (hoje NTC&Logística), que teve papel estruturante na organização do setor em nível nacional, foi fundada em 17 de setembro de 1963, em torno de duas bandeiras principais: a regulamentação da atividade e a criação de um seguro obrigatório de responsabilidade civil que acobertasse os danos causados à carga transportada.
A regulamentação, com a amplitude sonhada naquela época, não foi alcançada até hoje (apesar de muitos avanços nessa direção), mas o Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário – Cargas, ou simplesmente RCTR-C, foi criado apenas 3 anos depois do surgimento da NTC, por força do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, que organizou o mercado segurador em nosso país. Não é à toa, portanto, que este seguro seja reconhecido como uma conquista do setor. E é natural que ele continue exercendo papel fundamental na luta dos operadores de transporte pelo aperfeiçoamento deste mercado, embora ainda evidencie as preocupações daquela época, em que as estradas eram ainda mais precárias e traiçoeiras do que são hoje, ao oferecer cobertura aos danos causados à carga transportada exclusivamente em decorrência de colisão, capotagem, abalroamento, tombamento, incêndio ou explosão do veículo transportador, a despeito do crescimento de outros riscos que se tornaram até mais importantes do que aqueles e que seguem cobertos por seguros facultativos, como é o caso do roubo de cargas.
Faço essa digressão para lembrar que, em dezembro do ano passado, a NTC&Logística e a Seção de Cargas da Confederação Nacional do Transporte, através de seus respectivos presidentes, José Hélio Fernandes e Flávio Benatti – atendendo a reivindicações justíssimas e indignadas de inúmeras empresas de transporte de todo o Brasil – encaminharam ofício ao senhor Superintendente da SUSEP (protocolado naquele órgão sob número 10-015790/2014) em que denunciam o “solapamento das bases e a subversão da lógica do RCTR-C, numa ação concertada de algumas Companhias Seguradoras e de grandes embarcadores de carga, que insistem em impor ao mercado, de forma leonina e abusiva, a estipulação do seguro de RCTR-C, em nome e por conta do transportador rodoviário, oferecendo em contrapartida verdadeiras armadilhas, sob a forma de cartas de ‘dispensa de direito de regresso’, conhecidas como DDR”.
Depois de expor, didaticamente, toda a inconsistência desse procedimento em face das normas regulamentadoras do RCTR-C (notadamente da Resolução CNSP nº 219, de 2010), e dos prejuízos que causa aos transportadores, gerando perda de produtividade, redução artificial de fretes e insuportável insegurança jurídica, aquele ofício, em sua conclusão, pede uma ação enérgica da SUSEP “no sentido de fazer com que este seguro, tão importante para o mercado de transporte, volte ao seu leito normal e retome as características que sempre teve, em cumprimento ao espírito da lei, que o quis um seguro especificamente do Transportador e o tornou obrigatório, não permitindo, portanto, essas transações opacas e velhacas”. E postula, especificamente, a “supressão de dois dispositivos da Resolução acima referida – a saber, parágrafo 4º do art. 1º e inciso IV do art, 20 – que acabaram dando cobertura indevida e indesejável a toda sorte de abusos (…) que precisam ser coibidos, a bem do interesse público e da seriedade e respeitabilidade que devem caracterizar os contratos de seguro”.
Pois bem, apesar da importância do assunto e de terem-se passado mais de 6 meses desde então, aquela Superintendência de Seguros Privados queda-se inerte e silente, como se não fosse sua a missão de zelar pela manutenção do mercado segurador nos trilhos da estrita legalidade. E, saliente-se, esta atuação deve-se dar, sobretudo, para evitar abusos e danos aos clientes, aos consumidores, no caso, aos segurados, cujos interesses difusos carecem de uma proteção qualificada, atenta e pronta. Não é, infelizmente, o que se vê no caso em exame. O silêncio e a inação chegam a ser constrangedores.
Notadamente no mercado de cargas fracionadas e de alto valor agregado, mas não só neste segmento, as empresas de transporte suportam custos absurdos (em muitos casos superiores a 10% da sua receita bruta) com medidas de gerenciamento de riscos impostas pelas seguradoras dos embarcadores, nas tais cartas de DDR que, na prática, introduzem limitações e restrições às Condições Gerais do RCTR-C não previstas na Resolução mencionada anteriormente. As exigências são draconianas e ilegais; muitas são de cumprimento impossível. Quando acontece o sinistro, este muitas vezes é liquidado pelo Seguro de Transporte Nacional do Embarcador (antigo RR) que, em seguida, busca o ressarcimento contra a empresa de transporte. Como esta não fez o seu seguro de RCTR-C, porque acreditou na “carta de DDR”, vê-se às voltas com ações de regresso promovidas pela Seguradora do Embarcador. É um passivo inesperado e injusto que se avoluma e que pode inviabilizar a sobrevivência de qualquer empresa.
Isso não pode continuar. É preciso que a SUSEP retome, com urgência, o protagonismo e o ativismo que se espera de um órgão regulador e ponha ordem nesse terreno, em que devem prevalecer os princípios da confiança, da boa fé e da razoabilidade, em relações marcadas pela transparência e pelo equilíbrio.
Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.
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