Estrada é apontada como a principal porta para a entrada de drogas no estado
Engrenagens que movem a economia do estado (e do país) rodam pela Via Dutra. Mesmo caminho onde operam freios que imobilizam o Rio, diante do medo e de prejuízos. A rodovia é apontada pela Polícia Federal (PF) como a principal porta para a entrada de drogas em território fluminense. É ainda rota de armas que abastecem a guerra do tráfico e um dos alvos favoritos das quadrilhas de roubos de cargas: só este ano, segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), 134 das 320 (41,8%) ocorrências em rodovias federais do Rio foram registradas na Dutra. Insegurança que assusta motoristas e passageiros dos 44 mil veículos, em média, que atravessam diariamente o trecho da estrada no estado, em seus quase 170 quilômetros, do entroncamento com a Avenida Brasil, na capital, à divisa com São Paulo, em Resende.
É na tentativa de conter esse fluxo que a via será um dos principais pontos de atuação da Força Nacional, como parte da ajuda federal ao combate à criminalidade no Rio. A previsão é que o reforço comece a vigiar as pistas a partir de amanhã. Mas as equipes não devem evitar, ao menos de imediato, cenas como a vista na última quarta-feira à noite em Piraí. Faltava pouco para as 23h, e caminhoneiros buscavam abrigo nas paradas de beira de estrada. Numa delas, um posto de gasolina perto da Serra das Araras, seguranças fortemente armados e motoristas combinavam a estratégia para continuar a viagem.
A hora não era a mais apropriada. Eles sabiam que, entre as 23h e o início da manhã, por volta das 8h, ocorre a maior incidência de roubos de cargas na Dutra. Mas as três carretas carregadas de eletrodomésticos precisavam chegar logo ao destino. Seguiriam, então, em comboio, cada uma acompanhada por um carro de escolta armada com dois vigilantes, medida de segurança que se tornou comum na rodovia.
— Hoje, as estradas do Rio são as mais perigosas do Brasil. Normalmente os criminosos agem em bandos, fazem abordagens rápidas, com grande poder de fogo, e levam a carga para favelas como o Chapadão e a Pedreira. Passar pelo trecho da Dutra na Baixada Fluminense à noite é uma roleta-russa — diz um dos seguranças da escolta.
A PRF confirma que, na rodovia, a maior frequência de roubos de cargas acontece em São João de Meriti, em Nova Iguaçu e no município do Rio. Depois que anoitece, caminhoneiros evitam circular pelo trecho que vai da Pavuna à praça do pedágio de Seropédica.
TRANCADO NA BOLEIA
Não foi à toa que, quarta-feira passada, ainda cedo, por volta das 19h30m, Wilson Cabral, de 62 anos, interrompeu sua viagem para São Paulo. Recolheu seu caminhão num posto próximo ao acesso ao Arco Metropolitano. Esperaria o dia raiar, depois de ter vivido ali perto, meses atrás, um dos momentos mais tensos de seus 37 anos de estrada.
— Estava na altura de Engenheiro Pedreira, em Japeri, quando dois carros, lotados de bandidos com fuzis, me cercaram. Um deles voou pela janela como um gato. Quando me mandaram desviar para uma quebrada na estrada, o rastreador do caminhão foi acionado. O veículo parou. Com a mesma rapidez que entrou, o bandido saiu. Parecia até um gavião — conta Wilson, acrescentando que, com os rastreadores, as portas dos caminhões permanecem travadas durante toda a viagem.
A carreta em que Paulo Carvalho, de 48 anos, montou uma espécie de quarto — com cama, televisão e cortina de veludo — tem um desses equipamentos. Toda vez que ele sai do veículo, mesmo se for para ir ao banheiro, precisa avisar à empresa que o monitora. Quando volta, faz o mesmo procedimento. Qualquer movimento estranho é detectado.
— É quase uma prisão. Mas nos dá um pouco mais de segurança — afirma ele, também parado num posto da Dutra.
E quando não é à tecnologia, é à fé que muitos que recorrem durante as longas horas na boleia. Faz um mês que Valdir Baptista dos Santos, de 43 anos, teve sua rota mudada, do Nordeste, para o Rio. Ele carrega uma das cargas mais cobiçadas pelos bandidos: frango. E toda vez que cruza a Dutra, vindo do Paraná, não descansa.
— Dirijo rezando meu terço. Entrego a Deus. A Dutra é o trecho mais perigoso que rodo. No Nordeste, há pontos críticos, como áreas de Pernambuco. Em São Paulo, os bandidos roubam os caminhões para desmanche. Aqui, no Rio, eles querem a mercadoria. Circular à noite é dar sopa para o azar — garante o motorista.
Durante três dias, a equipe do GLOBO circulou pela Dutra e ouviu de caminhoneiros muitos relatos de assaltos. A reportagem se deparou também com as dificuldades dos agentes públicos para coibir não só o roubo de cargas.
No caso da entrada de armas e drogas, os métodos usados pelos bandidos para escapar da polícia se multiplicam. Para quem parte de São Paulo, a primeira blitz costuma ser a da Operação Barreira Fiscal, do governo do Estado do Rio, na altura de Itatiaia, por onde passam cerca de 7 mil a 8 mil caminhões por dia. Ali, algumas das estratégias do crime se revelam.
— Muitas vezes, as drogas vêm escondidas debaixo de cargas de grãos, e só conseguimos detectá-las com a ajuda de um scanner da Receita Federal. Até dentro de carros transportados por caminhões cegonha temos encontrado mercadorias ilícitas — conta o auditor fiscal Willian de Oliveira.
As drogas, diz Carlos Eduardo Thomé, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia Federal no Rio, são achadas inclusive em motocicletas. Mas, segundo ele, os caminhões são o grande problema.
— Motoristas costumam ser aliciados por traficantes na fronteira com o Paraguai e trazem carregamentos pelo Paraná, pelo Mato Grosso do Sul e por São Paulo, até chegarem ao Rio. A Dutra é a rota principal. Algumas vezes, eles desviam o caminho e entram por Minas Gerais, pela Rodovia Washington Luís (BR-040) — informa o delegado.
Da estrada, diz ele, a droga segue para entrepostos que costumam migrar. Podem ser favelas do Complexo do Alemão ou, cada vez mais, locais como um sítio em Queimados e um galpão em Olaria, descobertos pela PF.
— É um trabalho difícil. Basta ficar parado alguns minutos num posto da Dutra para saber que é impossível averiguar todos os caminhões que passam. Mas tem que ser feito — diz Thomé.
Fiscalizar, uma tarefa árdua
A tarefa de fiscalizar a entrada de armas e drogas no Rio pela Via Dutra, além de dificultada pelas táticas usadas por criminosos, encontra obstáculos nos próprios trâmites para cumpri-la, afirma, sem se identificar, um policial rodoviário federal. O efetivo, diz ele, é insuficiente. E, a cada apreensão realizada, a burocracia pode tirar, por várias horas, as equipes de seus postos.
— O caso deve ser levado para uma delegacia da Polícia Civil, e aí o sistema não ajuda, principalmente no interior. Um único delegado pode ser o responsável por várias distritais, a quilômetros de distância umas das outras. É preciso localizá-lo. Se for droga, é necessário que o material seja analisado por um perito, que pode estar em outra DP. Com todos os procedimentos, lá se vão, normalmente, sete horas, período em que outros carregamentos podem passar pela estrada.
Descobrir os métodos dos bandidos é outro desafio. Nos carros de passeio, o policial conta que todo modelo tem seu “mocó”: esconderijos geralmente usados para transportar armas e drogas. Os criminosos também costumam, a cada época, eleger seus veículos prediletos — o que influencia até na característica dos automóveis mais roubados. Nos últimos anos, relata, foram modelos como Captiva e Montana. Para carregar pistolas, já se descobriu até o uso de um tanque de óleo debaixo do motor de alguns veículos.
— As armas, muitas vezes, são desmontadas em várias peças, o que dificulta encontrá-las — diz ele.
O policial rodoviário federal afirma que o grosso desses contrabandos, no entanto, costuma ser descoberto nos caminhões. E aí se revelam mais estratégias:
— Caminhões frigoríficos, quase sempre, têm um selo federal que só pode ser aberto com a presença de um agente sanitário, sob o risco de inutilizar a carga inteira. É um exemplo. E os bandidos sabem dessas fragilidades.
Vidas que seguem o curso da rodovia
Ganha-pão diário, recanto de ar puro, risco constante, área de lazer… Se, nas pistas da Rodovia Presidente Dutra, nem o ruído dos motores abafa a trama de quem a atravessa, as margens da estrada são um curso sem fim de histórias. Nos 15 municípios fluminenses cortados pela rodovia, vivem 24,5 milhões de pessoas. Milhares delas confluem para a estrada com fama de ser a mais importante do país. Cada uma mantém uma relação particular com a via das multidões.
Para Silas Alberto, é endereço: número 398 da pista de descida da Serra das Araras. Ele é morador da Dutra há dez anos, desde que se aposentou das fábricas de Resende e decidiu viver perto da mata. No quintal, ele planta banana, biri-biri e laranja. É só na cerca de casa que fica o sinal mais evidente de que ele, na verdade, reside a passos da rodovia.
— Recolhi tantas calotas de carro que decidi fazer algo com elas: pendurei tudo numa grade e fiz meu muro de aço — brinca.
Bonachão e sorridente, Silas anda pela estrada como se estivesse na rua mais pacata. Bem diferente de Josué Faustino, funcionário da concessionária CCR Nova Dutra que tem como missão sinalizar e orientar os motoristas em alguns dos pontos mais perigosos do trajeto.
— Vejo tanto acidente que, todos os dias, volto para casa aliviado por estar vivo — afirma ele, que, pouco antes, tinha trabalhado no local em que uma carreta carregada de cerveja tombou, perto da casa de Silas.
Do sossego à Babel
José Augusto Filho, de 27 anos, também torce para que nada de grave lhe aconteça. Mas de um pneu furado na estrada, que precise de um reparo rápido, não reclama, não. Ele é borracheiro em Nova Iguaçu. Trabalha com o pai num estabelecimento que virou ponto de referência das redondezas. Mas faz uma queixa.
— Com a abertura do Arco Metropolitano, a rotatividade de caminhões neste trecho reduziu quase 50%. Mesmo assim, tem muito trabalho ainda. Meu pai só vai almoçar lá pelas 18h — diz ele, seguido de perto pelos seus fieis escudeiros, os cães Pimpolho e Hell.
É difícil haver uma parada em que os cachorros da Dutra não apareçam quase em matilhas. Às margens do Rio do Salto, que serve de divisa entre o Rio e São Paulo, um vira-lata preto lidera o grupo. Observa sonolento o vaivém de carros, numa vagareza que combina até com o povoado fluminense mais perto dali: Engenheiro Passos, distrito do município de Resende, uma das pontas da Dutra no Rio.
São 5 mil habitantes, que cercam uma velha estação de trem abandonada — símbolo das linhas férreas que não resistiram à rodovia. Por ali, uma das poucas preocupações é com os andarilhos, que chegam não se sabe de onde nem para aonde vão. Nada que abale a calma do lugar, que nem no sotaque parece com o outro lado da Dutra: a superpopulosa Baixada Fluminense e a Zona Norte do Rio.
No meio dessa confusão, o casal de publicitários Marcelo e Maria Cláudia Mendonça consegue encontrar espaço para momentos de romance à beira da pista, enquanto espera para entregar uma encomenda perto de Seropédica.
A quilômetros dali, na Vila Madalena de Belford Roxo, vive o economista Ismael Ferreira. Aos 53 anos, ele está desempregado, como tantos da região afetados pela crise financeira do estado. Nos períodos vagos, então, cuida da saúde em plena rodovia: corre no acostamento, lado a lado do tráfego pesado.
— Uso as marcações da via para contar quantos quilômetros estou percorrendo — diz ele, que só faz seus exercícios com coletes coloridos, para ficar visível aos motoristas e deixar claro à polícia que é um atleta, não um bandido em fuga.
Ismael, no entanto, só corre de dia. Quando o sol se põe, os personagens mudam. A penumbra toma o rumo, caminhoneiros se refugiam da violência, o néon dos motéis acende e as cortesãs revelam seus corpos. Nos confins de Nova Iguaçu, quase Queimados, o hotel deteriorado é só fachada. As moças que se exibem na entrada são o chamariz. Dão as boas-vindas a um autêntico bordel de beira de estrada.
Sem sutilezas
A recepção é um pé-sujo com cachaça e cerveja barata. Mais uma porta, abre-se o salão do forró. Nos andares de cima ficam os quartinhos, frequentado por viajantes e por vizinhos.
— Moro perto. Não sou solteiro nem casado, sou misturado. Venho por diversão, para tomar uma gelada e olhar as mulheres — diz um dos clientes.
Enquanto ele bebe, sentado numa cadeira de plástico encostada na parede encardida, uma das meninas da casa é luxo só: cabelos encaracolados dourados, unhas ornamentadas, maquiagem brilhante para esconder rugas e rusgas do tempo… A todo instante, ela ajeita o decote que segura os seios fartos. E anuncia, sem embaraço:
— Faço programa há 18 anos — diz ela, cobrindo o sorriso com um lenço de seda estampado.
Mas a conversa não vai muito longe. O cafetão chega: jovem, com cordão grosso no pescoço, avisa que aquele não é lugar de prosa. Fim de papo.
Mais adiante, estrada afora, entre os caminhões que pernoitam em Piraí, quem manda são os travestis, de fala mais fácil. Jéssica trabalha de saia curta, com tecido de cobra; Patrícia, de tranças vermelhas e suéter laranja. Todos os dias, sobem a Serra, saindo da Baixada, para garantir a sobrevivência no asfalto. Dizem gostar do que fazem, mas logo revelam que a realidade não tem tanta cor assim, está mais para memórias tristes.
Fazem três, quatro programas por noite, a R$ 50. O atendimento é nas cabines dos caminhões, ou em carros estacionados num canto escuro do posto. E, quando questionada sobre o que espera do futuro, a resposta de Jéssica, com 38 anos, 20 deles de ponto na Dutra, é seca e direta:
— A morte. Ou você acha que vou ficar rica aqui?
A noite adentra, uma garoa fina começa a cair. As duas sacam suas sombrinhas e continuam à espera da clientela. Por hora, afinal, é vida que segue.
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