A jovem de 25 anos contou as dificuldades de ser a única mulher em um ambiente dominado pelos homens. Já sofreu preconceito, mas não pensa em parar e conta com o apoio de toda a família.
Quem está por dentro das redes sociais e gosta de um bruto já deve ter visto algum vídeo de Anailê Santos Goulart alguma vez. A jovem de 25 anos está à espera de seu segundo filho, Ian, e, mesmo com um barrigão de quase nove meses não deixou de trabalhar na boleia do seu caminhão, o qual dirige com muita habilidade.
A escolha da profissão foi o resultado do incentivo de seu marido, Lucius Ribeiro Ramos, que também é caminhoneiro. Ambos trabalham no porto de Vila Velha, no Espírito Santo, fazendo pequenas distâncias e pagam o caminhão na base do empréstimo, batalhando para reforma-lo.
A vida de Anailê, no entanto, não é nem um pouco fácil. Logo quando entrou para trabalhar num ambiente de 173 homens e no qual é a única mulher, teve quem fosse ao sindicato para perguntar se não havia uma lei que proibisse uma mulher de trabalhar entre eles.
A infraestrutura do local também não ajuda. Grávida, Anailê sente vontade de usar o banheiro o tempo todo. No entanto, no local existe apenas um banheiro masculino, evidenciando que, infelizmente, as mulheres não estão contempladas.
Ainda assim, a jovem capixaba continua com seu trabalho e não pensa em parar. Em uma entrevista com nossa repórter Larissa Riberti, Anailê contou tudo sobre sua rotina. Confira a seguir.
Larissa Riberti: Anailê, conta um pouco pra gente da sua trajetória e como você começou como motorista de caminhão.
Anailê Goulart: De três anos pra cá mais ou menos que meu marido começou a me incentivar a trocar a categoria da carteira de motorista. Eu sempre trabalhei em escritório, era estagiária ou então secretária, já fui vendedora, não tinha nada a ver com caminhão. Quando eu comecei, comecei direto na carreta, eu não tenho histórico em caminhão menor não, assim que eu peguei a carteira, isso não faz muito tempo, foi em outubro do ano passado. Eu comecei a trabalhar não foi por sonho ou vontade, foi mais por necessidade, porque meu horário e o do meu marido nunca batia, então nunca estávamos juntos em casa. Não tinha tempo de levar meu filho pra escola, eu tinha que correr com o almoço pra levar a marmita no trabalho dele, então a gente viu que o melhor jeito era trabalhar junto. Foi aí que eu tirei a carteira para trabalhar com ele. Ele que me incentivou, ele confiava em mim, acreditava em mim mais do que eu. Eu sentava no caminhão e tremia, achava que não ia conseguir de jeito nenhum. Sempre gostei de dirigir, mas sempre dirigi carro, aí das primeiras vezes eu senti dificuldade. Mas ele nunca desistiu, sempre me ajudou.
Larissa: E como é o trabalho?
Anailê: Aqui o trabalho é 24 horas, a gente não viaja trabalhando. Aqui tem uma área onde ficam estacionados os caminhões e, do lado de fora, as empresas, e a gente presta serviço para o Porto. Então a gente só carrega container.
Larissa: Em qual porto você trabalha?
Anailê: Eu sou do Espírito Santo, trabalho no Terminal de Vila Velha. Então a gente faz esses serviços das empresas pro Porto. Claro que se aparecer algum serviço mais aqui por perto a gente pega, mas não vamos muito pra longe porque meu caminhão está muito velho, muito ruim.
Larissa: Aqui no seu facebook eu vi que você está tentando participar do programa Lata Velha, do Calderão do Hulk…
Anailê: Sim, a minha ideia é essa, porque eles reformam qualquer coisa, carro, caminhão, então eu resolvi tentar. Mas pra mim qualquer ajuda é bem vinda, independente de ser televisão, eu não quero ir pra lá, só quero reformar meu caminhão.
Larissa: E qual o modelo do seu caminhão?
Anailê: É um Scania 110, ano 1973. Está com 42 anos já.
Larissa: E você já teve alguma resposta dessas tentativas? O que você fez? Você mandou uma carta pro programa?
Anailê: Eu já mandei carta, eu já fiz de tudo. Tem um cara lá que trabalha nos projetos do Lata Velha, ele leu minha carta, conhece a minha história mas me disse: “Anailê aqui dentro eu não tenho poder nenhum de escolher nada, mas se você quiser você me envia a sua história por email, eu imprimo e entrego direto na produtora”. E isso ele fez mesmo, até me mandou uma foto quando entregou a carta. É ter esperança né, acreditar que vai dar certo e esperar. Agora me chamaram pra ir ao Programa da Eliana, mas não tem nada a ver com reforma de caminhão. Ela simplesmente viu um vídeo meu que teve muito acesso e me chamou pra um quadro de famosos na internet. Não vou ganhar nada, mas só de eu ir divulgar já é um avanço.
Larissa: E você ainda vai nesse programa?
Anailê: Sim, ainda não tem data. Eles ainda vão me falar.
Larissa: Eu ia justamente te perguntar sobre os vídeos. Eu vi que você tem um vídeo onde dá uma resposta pra uma crítica que você recebeu. O que aconteceu nesse caso?
Anailê: Não foi uma exatamente uma crítica. É que eu tinha saído numa matéria aqui no estado, num jornal, aí publicaram a matéria e tiraram umas fotos minhas. Uma das fotos eu publiquei na minha página e um amigo meu compartilhou. Um outro cara foi lá no facebook desse meu amigo e escreveu bem assim: “isso aí é tudo mentira, isso aí é foto paga, duvido que essa menina dirige”. Como se o jornal tivesse mentindo. Então eu me filmei pra provar que eu dirijo, com essa intenção. Eu nem conheço a pessoa que fez a crítica e também não sabia que o vídeo ia ter tanto acesso, já teve mais de dois milhões de visualizações.
Larissa: Certo! Eu já trabalho no Jornal Chico da Boleia há três anos e todo ano a gente tenta se aproximar das mulheres caminhoneiras, porque a gente sabe que o número de mulheres trabalhando no setor vem aumentando. Mas ainda existe muito preconceito. E falta ainda muita infraestrutura para as mulheres nas rodovias, como banheiros e espaços com segurança. Eu queria saber se você já sofreu algum preconceito, com atitudes machistas ou com essa falta de infraestrutura mesmo, que é algo bem comum na vida das mulheres caminhoneiras.
Anailê: Aqui onde eu trabalho é uma associação de carreteiros autônomos, então são 174 motoristas e só tem eu de mulher. Então banheiro só tem masculino, se eu quiser eu tenho que usar aquele mesmo. E como são autônomos, nem todos os caminhões são dirigidos pelos seus donos, tem também os funcionários. Então tem homem ali que passa do meu lado, não fala comigo e nem olha na minha cara, mas eu também não sei por quê. Logo que eu comecei a trabalhar, já teve homem que procurou o sindicato para saber se tinha alguma lei que proibisse que eu trabalhasse no meio deles.
Larissa: Não acredito!
Anailê: Já fizeram isso sim! Não sei qual deles foi, também nem quero saber! Deixei pra lá porque do mesmo jeito que tem muitos ali que não me apoiam, tem outros que me apoiam. Mas, por exemplo, aqui é um estacionamento muito pequeno, não tem 174 vagas, sempre fica caminhão fora da vaga. Aí tem que deixar no meio da rua, com a chave dentro pro próximo que chegar tirar se estiver atrapalhando. Então pra eu entrar na vaga, é tudo bem apertadinho. Se depender deles é capaz de um parar lá atrás e ficar olhando o que eu estou fazendo, torcendo pra que eu bata, só pra depois ter o privilégio de falar: “olha lá, tá batendo”. Mas graças a Deus nunca aconteceu nada.
Larissa: Pra depois eles dizerem: “Tá vendo, já falei, mulher vai bater”.
Anailê: Exatamente, é bem isso! Mas aqui todos eles me respeitam, até porque eu trabalho com meu marido. Cada caminhão aqui tem um número, então o trabalho é 24 horas, tem uma lista e eles vão chamando. O caminhão do meu marido é o 159, o meu é o 160, então a gente tá sempre junto, eu não fico sozinha. Desde que eu entrei, todo mundo já me conhecia porque eu ia pra lá treinar e quando eu comecei a trabalhar eu já estava com ele, então ninguém é doido de me desrespeitar aqui não. Disso eu não posso reclamar não. Mas é desse jeito, eu estou grávida, quero ir ao banheiro a toda hora, vou ganhar neném mês que vem e ainda estou trabalhando. Às vezes tenho que parar e tal.
Larissa: E você ainda está trabalhando, mesmo com quase nove meses?
Anailê: Sim, não deu pra parar não. Eu estou trabalhando ainda, eu só vou parar quando não aguentar. Não quero deixar meu caminhão aqui não, eles não tem cuidado e meu caminhão já está velho. Então vou preferir deixar meu caminhão parado do que deixar alguém trabalhando nele. Meu caminhão, além de ser velho, não é quitado. Quer dizer, no documento ele está quitado, mas a forma que eu encontrei pra dar o dinheiro dele à vista eu tive que financiar outras coisas. Por exemplo, eu financiei um carro 100% de um amigo nosso que vendeu no boleto pra gente, então todo mês a gente paga a prestação de um carro que a gente não tem, fora o empréstimo que eu fiz no nome da minha mãe. Então eu pago o empréstimo e mais o carro que a gente não tem.
Larissa: Anailê, e como é a relação com seu marido? Porque muitas mulheres caminhoneiras muitas vezes não contam nem com a ajuda dos companheiros, nem com o apoio da família. Como é isso?
Anailê: Se não fosse o Lucius eu não teria começado. Ele que me ajudou, eu trabalhava num escritório e com um dinheiro que eu recebi quando sai, fui e tirei minha carteira. E ele que me ensinava, ele que fazia tudo. Ele falava: “não desiste não, que você vai conseguir”. Claro que nem tudo eram mil maravilhas, às vezes eu ficava nervosa ele ficava bravo. Mas ele teve muita paciência. Porque ele não queria simplesmente que eu aprendesse só a ligar o caminhão. Então se eu passasse uma marcha no tempo errado, qualquer coisa que eu fizesse de errado ele me corrigia. Eu tive que aprender tudo certinho.
Larissa: Vocês são, então, o casal da boleia.
Anailê: Sim! Ele me ajuda em tudo. Tudo no caminhão que precisa! Porque meu caminhão é muito velho, a gente precisa trocar óleo do motor a toda hora, colocar água, o capô dele da frente, abrir eu consigo, mas fechar eu não consigo, ainda mais com essa barriga que eu estou. Então ele vai e me ajuda. É um trabalho bem pesado, mas a gente está sempre junto e se ajuda muito. Também tem dez anos que estamos juntos.
Larissa: A sua história é muito interessante. Eu te digo isso porque o setor do transporte rodoviário de cargas, além de dominado pelos homens, envolve uma série de questões muito complicadas. Então pra você promover uma mudança de consciência é muito difícil. Às vezes temos que lidar com problemas muito arcaicos como o machismo. Então ter alguém que te incentiva a estar nessa profissão mesmo sabendo de todos os riscos e a falta de infraestrutura para as mulheres é muito positivo.
Anailê: Aqui mesmo a gente trabalha numa avenida. Apesar de ser só uma avenida que a gente passa, tem vezes que a gente trabalha de madrugada. Então é “nóia” na rua o tempo todo. Uma vez já pararam o caminhão dele. Então segurança é mesmo um problema.
Larissa: Anailê, quais são seus planos daqui pra frente?
Anailê: A gente vive de aluguel. Na verdade a gente mora numa kitnet, minha casa não tem nem sala. A gente pensa, assim que eu voltar a trabalhar, em quitar meu caminhão, independente de ir pra reforma, eu tenho que botar minha cabeça no mundo real. Então eu preciso trabalhar pra quitar meu caminhão e comprar nossa casa. E depois até quem sabe trocar o caminhão. Porque ele também tem um “jacaré”, o dele é um pouquinho melhor, mas também não é lá aquelas coisas. A gente pensa nisso, comprar um carinho, e eu não pretendo parar não. Apesar de ter começado por necessidade, hoje em dia é a profissão que eu gosto, que eu escolhi pra mim, e a gente não se vê mais fazendo outra coisa, nem eu e nem ele.
Redação Chico da Boleia
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