Iniciamos esse texto com uma longa citação.
“A Declaração Universal dos Direitos Humanos, pedra fundamental de nossa moderna convivência civilizada, estabelece, no seu art. 3º, que “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” e adiciona, no art. 5º: “ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.
Mais recente, a Declaração Universal dos Direitos da Criança estabelece, no seu Princípio VI – Direito ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade, que “a criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade”.
A Constituição Federal estipula, no seu art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990, considerado por muitos como um dos mais avançados do mundo, também contempla, no seu art. 4º: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Não obstante todo esse aparelho de recomendações, normas e resoluções, diariamente somos surpreendidos com notícias de graves violações, de atos de extrema barbárie praticados, em muitos casos, pelas pessoas ou instituições que deveriam ter a missão de zelar pela vida e pela integridade dessas crianças e adolescentes: suas famílias e as instituições públicas ou privadas que, em tese, seriam os responsáveis pelo resguardo dos mesmos.. Ainda mais: o que chega à luz pública, o que consegue furar o véu da vergonha, do estigma e do ocultamento, parece ser só a ponta do iceberg, uma mínima parcela das agressões, negligências e violências que, de fato, existem e subsistem em nossa sociedade”.
O trecho acima é parte do texto que inicia o documento elaborado pela Área de Estudos sobre Violência vinculada ao organismo Flacso-Brasil. “O Mapa da Violência: crianças e adolescentes do Brasil” é o mais recente estudo (2012) sobre a violência que atinge essas categorias no país. A análise toma como ponto de partida duas questões fundamentais: a mortandade que é causada por fatores naturais e a que é causada por fatores externos, incluindo também a violência estrutural contra essas categorias sociais.
De acordo com o documento, se as causas naturais de mortandade vem despencando, o número de óbitos por fatores externos se eleva de forma gradativa.
“Um fato relevante a ser destacado é a marcante diferença evolutiva entre as causas naturais e as externas na mortalidade de crianças e adolescentes. Na contramão das denominadas causas naturais que diminuem de forma contínua e acentuada nas três décadas analisadas, as causas externas evidenciam crescimento, principalmente a partir do ano 2006. As taxas de mortalidade por causas naturais na faixa de <1 a 19 anos de idade despencam de 387,1 óbitos por 100 mil em 1980 para 88,5 em 2010. Isso representa uma queda de 77,1%. Cai para menos da quarta parte do que era em 1980. Já as causas externas, como acima apontado, passam no mesmo período de 27,9 para 31,9: crescimento de 14,3%. Com esse diferencial, aumenta de forma drástica a participação das causas externas no total de mortes de crianças e adolescentes, o que pode ser perfeitamente visualizado na tabela e no gráfico 2.3. Efetivamente, em 1980 as causas externas representavam só 6,7% do total de mortes de crianças e adolescentes. Para 2010 essa participação quadruplica: se eleva para 26,5%. E a tendência visível nos últimos anos indica que essa participação vai crescer mais ainda. Onde a mortalidade mais cresceu foi nos homicídios, que passam de 0,7% para 11,5 % e nos acidentes de transporte, que passam de 2% para 11,5% do total de mortes na faixa de <1 a 19 anos de idade.”
Aqui queremos destacar o seguinte dado: o estudo revela que os “acidentes de transporte” são o segundo fator externo que causa 27,2% das mortes de crianças e jovens, atrás dos assassinatos, responsável por um índice de mortandade de 43,3% entre os grupos citados que, somados aos 19,7% de outros acidentes, resultam em mais de 90% das causas de mortes de crianças e adolescentes por causas externas.
Sobre os acidentes de trânsito o estudo aponta que na última década o crescimento da mortalidade registrou-se nos extremos da escala de idades. Nas idades intermediárias houve quedas. Assim, verifica-se um forte incremento na mortalidade de crianças com menos de 1 ano de idade, cujas taxas passam, entre 2000 e 2010, de 2,8 para 4,6 mortes em cada 100 mil crianças, o que representa um crescimento de 61,4%. Nos adolescentes a partir dos 14 anos de idade constata-se crescimento, principalmente a partir dos 18 anos de idade, quando o aumento entre 2000 e 2010 supera a casa de 50%.
O documento ainda aponta para a situação das vítimas no momento do acidente. “Podemos ver que, com menos de 1 ano de idade, a maior proporção de mortes de crianças se registra como ocupantes de veículo automotor. A partir do primeiro ano e até os 14 anos de idade, a maior incidência dos acidentes acontece quando transitavam a pé pelas ruas. Entre 15 e 19 anos de idade, a maior proporção encontra-se entre os motociclistas. Também devemos notar o risco, em todas as faixas etárias, de crianças e adolescentes trafegando em automóveis”.
A situação fica ainda mais complicada em se tratando de mortes de crianças e adolescentes trafegando em motocicleta, índice que cresceu 376,3% na década 2000/2001. Por outro lado, o estudo registra queda de 27% nas mortes de crianças pedestres no mesmo período.
Os índices apresentados acima revelam mais do que um trânsito caótico e a falta de estrutura em mobilidade identificada na maioria das cidades e estradas do país. Por outro lado, eles revelam uma sociedade carente de educação e de conscientização no trânsito.
A falta de estrutura, somada a péssima qualidade de transporte público, a falta de educação dos sujeitos que compõem o sistema de trânsito, a falta de políticas efetivas e coordenadas sobre o assunto e o estresse causado nos engarrafamentos das grandes cidades, são os fatores fundamentais para a elevação do número de mortes não só de crianças e de adolescentes, mas de adultos e idosos no trânsito todos os anos.
Ainda que tais índices tenham apresentado uma significativa melhora nas últimas décadas, temos muito que avançar. E ainda que haja uma estrutura rodoviária e urbana perfeita, sem educação e conscientização não chegaremos a lugar algum e o transporte continuará acumulando o terrível prêmio de vice-campeão entre as causas de mortalidade de crianças e adolescentes no país.
Redação Chico da Boleia
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