O Professor de Economia Política, Flávio Miranda, fala sobre o atual ajuste fiscal e os esforços governamentais para colocá-lo em prática, questiona sua real necessidade e explica como ele pode afetar nosso setor e a vida de todos os trabalhadores.
Flávio Ferreira de Miranda
Professor de Economia Política na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
É fato notório, presente nos noticiários televisivos das principais redes e nas capas dos jornais o esforço fiscal que o governo realiza: só no dia 22 de maio foi anunciado corte de 70 bilhões de reais, no qual saúde e educação foram as pastas mais afetadas; e tramitam as famigeradas medidas provisórias 664 e 665 que restringem o acesso ao seguro-desemprego e outros direitos previdenciários dos trabalhadores e trabalhadoras do país de diversas formas.
Tudo em nome do ajuste que, dizem políticos e economistas tanto do governo quanto da oposição (todos da “ordem”), tem de ser feito. Afinal, o país é como uma casa: quando se gasta muito em um mês, deve-se enfrentar a dureza do esforço para economizar no seguinte!
Curioso notar que, ao que parece, muitas “casas” do mundo devem ter gastado bastante nos últimos anos, já que medidas deste tipo são tomadas em diferentes cantos do planeta, inclusive na Europa.
O que acontece? Será mesmo inevitável o tal ajuste?
Retornemos algumas décadas na história. Estamos nos anos 1970 e o que se evidencia (além do fato de que o Brasil tem o melhor futebol do mundo – ai que saudade!) é o aparecimento de uma crise econômica mundial, que põe fim a era de “bem-estar” social que existia nos países desenvolvidos e ao projeto de desenvolvimento econômico que se implementava no Brasil e em outros países ditos economicamente “atrasados”.
Em termos globais, a crise dos anos 1970 (cujos primeiros sinais surgem no final dos anos 1960, com redução nas taxas de crescimento nas principais economias do mundo) se apresenta na incapacidade de manutenção das taxas de lucro que até então permitiram a expansão virtuosa da produção (para quem não se lembra essa crise encerra a época na qual, dentre outras coisas, expandiu-se a produção – e o consumo – de bens duráveis, com a marcante entrada das grandes montadoras de automóveis no país e a construção de grande parte das estradas que o cortam de norte a sul). Essa crise genuinamente mundial (como a que vivemos agora) arrasta-se para o início dos anos 1980, após um breve semblante de recuperação em 1976-77.
Nesse cenário, há uma massa de dinheiro disponível para a aplicação lucrativa (o que chamamos de capital) que, no entanto, não consegue encontrar as taxas desejadas (e necessárias para si).
Por que estamos falando disso? As tentativas de solução para a referida crise determinaram uma nova etapa de expansão da economia mundial, cuja crise vivemos agora. Ou seja, as causas da crise mundial atual (e do ajuste fiscal que aparece como remédio inevitável após anos de orgia – para a qual, aliás, nós não fomos convidados) devem ser buscadas nas formas de saída da crise dos anos 1970.
Os ataques aos direitos dos trabalhadores, o movimento de abertura comercial e financeira, as privatizações etc., tudo o que chamamos de modelo neoliberal de desenvolvimento representa a solução para a crise anterior. Em suma, um movimento de busca para recompor a lucratividade perdida do capital no comércio e produção e, ao mesmo tempo, oferecer ganhos elevados na esfera financeira.
Os efeitos disso no Brasil? Quem não se lembra dos duros anos 1980 e 1990? Em linhas muito gerais, intensificaram-se as transferências das riquezas produzidas aqui para os países mais desenvolvidos, tanto pelo comércio, quanto remessas de lucros e, principalmente, através da dívida pública. Aliás, nesses anos, a vulnerabilidade da economia brasileira com relação ao resto do mundo só fez crescer.
Aí vamos, sempre a reboque, no balanço das marolas e no quebrar das grandes ressacas. Foi assim, por exemplo, com o Plano Real, apenas possível pela maciça entrada de capital financeiro no país (via endividamento público, principalmente), e com a expansão (ainda que tímida e abaixo da média mundial) dos anos Lula, favorecida pelo ciclo das chamadas commodities – que o país produz, mas não tem qualquer controle sobre os preços determinados fundamentalmente na especulação financeira internacional.
As frágeis bases desse capitalismo sustentado com os ganhos fictícios das finanças não tardaram a aparecer. Primeiro nos anos 1990 em países periféricos: México, os outrora “Tigres Asiáticos”, Brasil, Argentina etc. Depois na bolsa de especulação com ativos referidos às empresas de informática, a Nasdaq; para uma breve, e ilusória, folga com a intensificação da especulação com moradias (crédito hipotecário e seus derivativos, nos países desenvolvidos) e commodities; até a quebra definitiva que iniciou-se no mercado imobiliário dos EUA e alastrou-se com a falência de grandes bancos e dos Estados que arcaram com seus prejuízos.
Saídas? Bem, as saídas… garantir os lucros e juros do capital, afinal, a máquina não pode parar, doe a quem doer, ou melhor, que se dane os assalariados. Tanto aqui, como em outros lugares do mundo, os ativos dos investidores são garantidos às expensas dos serviços públicos e dos direitos trabalhistas, em uma ofensiva conservadora para, ao mesmo tempo, garantir que os Estados terão dinheiro para pagar suas dívidas e diminuir os custos do capital com salários.
Uma ilustração: em 2014, de tudo o que o governo federal gastou 45% destinou-se ao pagamento de juros e amortizações da dívida, ou seja, quase a metade; com saúde e educação menos de 4% com cada uma das pastas. Apesar disso, quais são os gastos cortados no ajuste? Como dissemos no início: saúde, educação, previdência, transportes (o que afetará a situação já calamitosa de nossas rodovias)… Os juros são sagrados e ainda aumentados sob o pretexto de controle da inflação, quando todo economista que se preza (não são tantos assim) sabe que essa inflação não se combate desta forma.
Em suma, quem paga a conta? Você assalariado, usuário da saúde pública, que tem filhos e filhas matriculados em escolas públicas, que contava com a previdência pública para alguma eventualidade, que dirige pelas estradas desse Brasil. Quem recebe o pagamento? O grande capital (banqueiros, grandes comerciantes e industriais, enfim, grandes corporações que sabem muito bem que “diversificar ativos” é a melhor forma de se obter ganhos).
Por que políticos e economistas, da oposição e da situação, tratam o ajuste como inevitável? Porque não querem e não podem (afinal, são meros funcionários, basta ver quem lhes financia as campanhas eleitorais) contestar a ordem na qual se funda a necessidade do ajuste. (Que se frise: nem oposição, em seus mais diversos partidos, nem situação, mesmo aqueles que se dizem a favor dos trabalhadores; tampouco manifestantes que pedem impeachment com a camisa da CBF – pelo que se sabe, não foi vista qualquer faixa contra os ganhos dos grandes bancos na Av. Paulista).
Que assim seja apenas mostra como “quem recebe” está bem organizado politicamente, a ponto de fazer valer seus interesses através do Estado. Se assim continuará a ser, depende da capacidade de organização da classe trabalhadora para dizer não! Não pagaremos essa conta!
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