Profissionais acreditam que a sociedade passou a valorizá-los após a mobilização.
Dia 25 de julho é uma das datas na qual se comemora o Dia do Motorista no Brasil. Nesse período, são tradicionais as festas, celebrações, homenagens e procissões à São Cristóvão, considerado o santo protetor de todos os motoristas.
Mas neste ano, a celebração pode ter um significado diferente para os caminhoneiros e caminhoneiras. Após a grande mobilização da categoria que eclodiu a partir do dia 21 de maio, e que praticamente parou o país por mais de dez dias, é certo que a sociedade brasileira tem uma imagem diferente dos trabalhadores da estrada.
Vale relembrar, primeiramente, um pouco das condições que motivaram a organização do movimento. A primeira delas, foi justamente a necessidade de se estabelecer definitivamente o fim da cobrança de pedágio sobre eixo suspenso. A determinação já era estabelecida pela Lei 13.113/2015, também conhecida como Lei do Motorista, mas não era aplicada devidamente. Apenas as rodovias federais praticavam a isenção da taxa de pedágio em caminhões que trafegassem com um ou mais eixos suspensos.
A insatisfação com o não cumprimento de tal norma, agravado pelos altíssimos preços cobrados em pedágios de todo Brasil, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, foi um dos “combustíveis” para a organização do movimento que resultou em bloqueios de rodovias e paralisações por quase todo território nacional.
O movimento iniciado em fins de maio, também pleiteou a defesa da redução do preço do óleo diesel, bem como de outros derivados do petróleo, como a gasolina e o gás de cozinha. A inclusão dessa pauta na lista de reivindicações, suscitou a discussão de um aspecto importante que é, na verdade, de interesse nacional: a política de preços do então presidente da Petrobras, Pedro Parente.
Para muitos especialistas da área, como engenheiros da estatal e pesquisadores do mercado do petróleo – que pude entrevistar nas edições anteriores do jornal Chico da Boleia –, tal política de preços é a responsável por promover os sucessivos aumentos no valor do combustível, já que atrela esses preços às oscilações do mercado internacional.
Assim que explodiu o movimento grevista, no entanto, algumas entidades sindicais defenderam a hipótese de que os tributos eram os grandes responsáveis pelo aumento do preço dos combustíveis.
Com o passar do tempo, as discussões foram sendo aprofundadas e as informações que circularam já davam conta de que o que havia afetado, de fato, o valor dos derivados do petróleo no Brasil, havia sido a política de preços da Petrobras.
Na edição passada e retrasada do Jornal Chico da Boleia, publicamos reportagens que explicam que tipo de política é essa e como ela afeta diretamente o bolso do consumidor e, sobretudo, o planejamento dos custos do caminhoneiro autônomo. (O leitor mais curioso poderá encontrar todas essas informações nas edições digitais publicadas em nosso site).
De acordo com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos), no período de 22 de abril a 22 de maio de 2018, a Petrobras reajustou o preço da gasolina e do diesel nas refinarias 16 vezes.
O estudo mostra que o preço da gasolina saiu de R$ 1,74 e chegou a R$ 2,09, alta de 20%. Já o do diesel foi de R$ 2,00 a R$ 2,37, aumento de 18%. Para o consumidor final, os preços médios nas bombas de combustíveis subiram de R$ 3,40 para R$ 5,00, no caso do litro de gasolina (crescimento de 47%), e de R$ 2,89 para R$ 4,00, para o litro do óleo diesel (alta de 38,4%).
A suspensão da cobrança do pedágio sobre eixo suspenso e a redução do preço dos combustíveis foram, portanto, as duas principais reivindicações do movimento grevista. Vale destacar que, num primeiro momento, a mobilização contou com a adesão de motoristas de frota e caminhoneiros autônomos. Também não foi raro ver circulando as opiniões de donos de transportadoras apoiando tais pautas. Por isso, grande parte da imprensa passou a destacar que a greve poderia ser fruto de um lockout, que é quando os patrões impedem que seus funcionários tenham acesso aos meios de produção, forçando a explosão de uma mobilização.
No entanto, vale lembrar que após a primeira tentativa de negociação entre entidades sindicais e governo federal, ocorrida na quinta-feira daquela mesma semana, os caminhoneiros autônomos se recusaram a desmobilizar-se, alegando que suas demandas não haviam sido atendidas. Pela segunda vez, então no domingo transcorrido daqueles primeiros dias, esses autônomos permaneceram nos bloqueios, rejeitando novo acordo entre sindicatos e governo.
O quadro que se configurou durante esses dias de greve nos mostra, então, que o movimento grevista contou com a participação de uma série de sujeitos, emanados de diferentes grupos que compõem o setor, bem como motoristas de frota e autônomos. Pelas conversas que pude estabelecer com alguns caminhoneiros, também foi possível notar que muitos deles aderiram espontaneamente à mobilização, sem necessariamente terem respondido à uma convocação formal das entidades representativas da categoria.
Através dessas conversas, também constatei que existiam outras demandas feitas pelos trabalhadores. Por mais que elas não compusessem a pauta formal de negociações entre os representantes da categoria e o Estado, estavam sempre presentes nos bloqueios, nas entrevistas, nos vídeos em redes sociais, nas faixas e placas espalhadas pelas rodovias. Eram os pedidos por melhores condições de trabalho.
Essa genérica reivindicação, por mais vaga que possa parecer ao leitor que não é do setor do transporte rodoviário de cargas, tem um efeito prático muito claro para os caminhoneiros: melhoras em termos de segurança, infraestrutura, frete e legislação trabalhista.
Também é interessante notar que, em meio a todo esse movimento plural e diverso, e em meio à existência de pautas expressas formalmente ou não pelos caminhoneiros, ficou muito evidente para mim, jornalista que acompanhou alguns pontos de mobilização, um outro aspecto da organização da categoria: a forma como os caminhoneiros e caminhoneiras se relacionavam entre si enquanto companheiros de luta e com sua própria profissão.
Após esse momento de luta coletiva, eu não tenho dúvidas de que o ano de 2018, pela magnitude da mobilização dos caminhoneiros e os impactos causados por ela na sociedade como todo, foi um divisor de águas para a categoria.
Acredito que tal ponto de cisão está relacionado, principalmente, com a própria forma como os trabalhadores da estrada passaram a se enxergarem como peças centrais da economia brasileira.
É fato que muitos deles já reproduziam o conhecido mote “Sem caminhão, o Brasil para”. Mas a partir de maio deste ano, foi ainda mais expressiva a forma como eles se sentiram parte integrante e fundamental de todo um sistema econômico que depende de uma distribuição de produtos essenciais feita essencialmente por eles.
Porém, nem sempre foi assim! E essa diferença pode ser constatada através da pesquisa “Perfil do Caminhoneiro”, divulgada pela Confederação Nacional dos Transportes em 2016. Nela, foram entrevistados 1066 caminhoneiros, sendo 729 deles autônomos, e 337 empregados de frota.
Uma das perguntas realizada pela pesquisa era sobre a imagem que os caminhoneiros entrevistados imaginavam que a sociedade em geral tinha dele. Naquela época, 44,7% deles respondeu que acreditava que a sociedade achava que eles eram trabalhadores irresponsáveis. Podendo responder mais de um item, mais de 55% deles também acreditava que a sociedade imaginava que eles eram imprudentes no trânsito e usuários de drogas. Apenas 12,6% dos caminhoneiros assinalou que achava que a sociedade os via como importantes para a economia do país.
É verdade que para saber se, de fato, a percepção desses mesmos caminhoneiros sobre a imagem que a sociedade tem deles atualmente mudou, seria preciso fazer a mesma pergunta aos mesmos entrevistados.
No entanto, não seria exagero supor que, após maio de 2018 e a grande mobilização da categoria, boa parte desses profissionais já se vê diferente aos olhos dos outros, ou seja, da sociedade brasileira em geral. Isso pode ser atribuído, em grande medida, ao fato de que processos de mobilização social mais amplos tendem a empoderar seus sujeitos e serem também períodos de construção pedagógica de uma consciência de classe.
Por isso, também não é equivocado afirmar que durante o movimento grevista, muitos caminhoneiros ganharam consciência do seu papel social e profissional. Além disso, a sociedade sentiu o impacto da crise do abastamento generalizado e pode perceber a importância da categoria para o desenvolvimento econômico do país, tendo a oportunidade de construir uma nova concepção sobre ela.
Com o objetivo de entender que tipo de relação alguns caminhoneiros e caminhoneiras estabeleceram com o movimento grevista, portanto, realizei algumas entrevistas com membros da categoria que participaram da mobilização. A partir delas, foi possível identificar algumas expectativas, frustações, conquistas e contradições que se revelaram com o movimento.
A pluralidade de sentimentos que ficaram depois de maio deste ano pode ser sentida, por exemplo, através da fala de Felipe Melgarejo Rodrigues. O caminhoneiro autônomo de Coxim, Mato Grosso do Sul, dirige um 113 e trabalha junto com seu sogro.
Rodrigues me contou que está na profissão muito em função do pagamento dos estudos de sua mulher, que atualmente cursa enfermagem. “Trabalho pra formar minha mulher e vou sair do ramo, porque está muito defasado e muito sucateado o transporte brasileiro. Somos completamente abandonados por nossas autoridades políticas”, disse Felipe.
Ao contrário dos outros entrevistados, o caminhoneiro contou que teve uma experiência bastante frustrante no movimento. “Estávamos há 10 dias fazendo uma paralisação justa da nossa classe. Fomos traídos pelo exército e o povo fazia fila pra abastecer mais caro do que estava antes do movimento. Não teve apoio nesse sentido. Nós nos sentimos péssimos com isso, mas bola pra frente!”, comentou.
Felipe ainda relatou que tem receio do desaparecimento da categoria, devido ao baixo valor do frete pago aos caminhoneiros. Para ele, a concorrência com as transportadoras é, na maioria das vezes, desleal, já que as empresas não precisam obter lucros grandes em fretes de retorno, por exemplo, apenas cobrir os custos de operação. “Nós autônomos temos que manter uma casa e pagar o caminhão. Por isso, temos que ter lucro com todos os fretes”, expressou.
Apesar do sentimento de frustração, Felipe acredita que, após a greve deste ano, a sociedade brasileira vê os caminhoneiros com outros olhos. Além disso, os próprios caminhoneiros mudaram seus “conceitos e princípios”, de acordo com ele.
“Hoje, depois da nossa demonstração da força que temos, aquele que ia oferecer uma gorjeta pra carregar ou descarregar na frente dos outros está pensando bem. Porque sempre tem alguém fiscalizando. Achei isso ótimo, mas ainda temos muito pela frente!”, concluiu.
Essa percepção de que a sociedade agora vê com outros olhos a categoria, também é compartilhada por Clari Rodrigues, motorista de frota. Segundo ela, as pessoas agora veem os caminhoneiros com “olhos diferentes e melhores do que no passado”.
“Tem muitos lugares que tu chega, tipo eu, quando chego em casa e vou no mercado. As pessoas sabem que eu sou motorista. Às vezes eu chego com o caminhão na frente e eles dizem “se não fossem vocês, nós dependemos de vocês”. A gente nunca recebeu isso, então eu acho que a sociedade nos enxerga de maneira mais positiva depois da greve”, opinou.
Clari paralisou suas atividades no dia 18 de maio e contou um pouco da sua experiência nesses dias. Segundo a caminhoneira, um dos pontos de paralisação da categoria, era justamente atrás da sua casa, em Lajeado, no Rio Grande do Sul.
“Meu caminhão ficou parado na frente da minha casa e eu ia lá todos os dias. A gente participava, tomava chimarrão. Tinham muitos colegas que eu já conhecia, mas também fiz boas amizades”, relata.
Entre os profissionais que participaram do bloqueio estavam, evidentemente, profissionais e seus familiares de outros estados, que não contavam com a mesma estrutura que Clari. Por isso, ela conta que ajudou algumas pessoas como podia.
“Tinha um casal que estava lá. E naquele lugar era ruim para tomar banho, não tinha estrutura. Então eu fiz amizade com ela e com ele, principalmente. Eles iam na minha casa, tomavam banho, jantavam, quase toda noite. Pra não ficarem só no posto, porque foram 12 dias pdos, né?”, explicou a caminhoneira.
Esse cotidiano de amizade e solidariedade entre os membros da categoria também é relatado por Moisés Oliveira. Caminhoneiro autônomo residente em São Paulo, mas nascido na Bahia, Moisés foi um dos protagonistas da mobilização na rodovia Regis Bittencourt e acompanhou o dia a dia de companheiros no bloqueio.
“Os caminhoneiros se organizaram por várias razões, mas as principais delas foram o aumento desordenado do diesel e a defasagem do preço do frete. A nossa mobilização, dos autônomos, começou pelas redes sociais, em grupos de whatsapp e facebook. Em pouco tempo, tomou aquela proporção”, contou o motorista.
Segundo Oliveira, a convivência entre os motoristas era tranquila. Algumas atividades reuniões aconteciam para que se pudesse explicar para outros motoristas que alguns tipos de produtos não poderiam passar pelos bloqueios, apenas itens essenciais, como medicamentos.
“A gente também teve uma grande ajuda da população. Pessoas que nos davam comida, porque na carga a gente não mexia não, só em último caso – era complicado, tinha seguro, etc. Então o auxílio da população foi bastante importante para nós”, relatou.
Para Moisés, os caminhoneiros aprenderam muita coisa durante aqueles dias. A primeira delas foi identificar como alguns segmentos da direita fizeram uso dos caminhões paralisados para colocar placas de intervenção militar. Moisés ainda relatou que a polícia atuou de maneira repressora em alguns pontos, impedindo a paralisação dos caminhoneiros e o exercício do direito de greve.
Apesar dos percalços enfrentados, o caminhoneiro acredita que a sociedade passou, após o movimento grevista, a ver a categoria com outros olhos. “O motorista antes estava sem moral nenhuma, depois da greve, o pessoal começou a olhar pra gente de maneira diferente. As empresas principalmente. Mudou o tipo de comportamento. Antigamente, o pessoal da logística falava alto com você. Agora, eles se dirigem a gente com educação, pelos menos nas duas, três empresas que eu trabalho. Mudou bastante!”, concluiu.
De maneira geral, os caminhoneiros entrevistados acreditam que houve melhoras para o exercício da profissão. No entanto, eles também temem represálias futuras e são receosos quanto à durabilidade das medidas provisórias e das promessas do governo que visam atender as suas demandas.
Independente, no entanto, das contradições, frustrações e vitórias do movimento dos caminhoneiros, é preciso reconhecer que esses profissionais passaram por uma renovação, real e subjetiva. Real porque agora são vistos com outros olhos pela sociedade brasileira, inclusive por empresários e pelas forças políticas que articulam os interesses do transporte rodoviário de cargas dentro das instâncias governamentais.
Subjetiva, porque os próprios caminhoneiros e caminhoneiras tiveram uma grande oportunidade de retificarem a maneira como enxergam aos seus companheiros e sua própria profissão. Talvez esta tenha sido, então, a grande conquista da greve da categoria. Que eles possam, portanto, seguir adiante com sua luta por dignidade trabalhista e pela manutenção de sua profissão.
TEXTO: Larissa Jacheta Riberti | FOTO: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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