Conheça a pior estrada do Brasil, onde acidentes e prejuízos são rotina

Uma gota de suor escorre pelo rosto do borracheiro João Marciano, o Gauchinho, enquanto ele dá mais uma batida com um martelo para tirar a roda de um caminhão parado em sua loja em Placas, último povoado do Oeste da Bahia.

A roda sai do eixo após uma última puxada. O pneu está destruído.

“Esse já era. Vai pra pilha”, lamenta Gauchinho ao informar o caminhoneiro Rafael Balan, que até observa a cena conformado.

O pneu de R$ 1.400 vai para uma área na lateral da loja que, um mês atrás, estava limpa e agora tem outros 30 pneus amontoados à beira da BA-460, uma das vias que liga a região ao Tocantins.

O trecho faz parte de uma rota de 262 quilômetros que é considerada a pior estrada do país entre os 109 principais corredores de tráfego no país, segundo pesquisa anual da CNT (Confederação Nacional dos Transportes).

A reportagem da Folha percorreu todo o trecho, ida e volta.

QUALIDADE DAS VIAS
 

Velha, perigosa, sem sinalização, com curvas fechadas, pontes estreitas e com buracos e ondulações em quantidade significativa, a ligação viária entre as cidades de Luis Eduardo Magalhães (BA) e Natividade (TO) fez o caminhoneiro Rafael Balan perder tudo o que ganharia no frete.

É um pequeno pedaço da conta que colabora para o país a desperdiçar todo ano R$ 2,3 bilhões pela má qualidade das vias asfaltadas, segundo estimativa da CNT.

O mau estado da via leva a perdas financeiras -na estimativa da confederação, cada caminhão que passa nesse trecho gasta 48% mais do que gastaria numa estrada boa- e também de vidas.

Foram 110 acidentes em 2014, com 12 mortes, colaborando com a estimativa de 44 mil mortes anuais no trânsito no Brasil.

“Morre mais gente aqui em estradas que em países em guerra”, diz Bruno Batista, diretor executivo da CNT, que estima um custo de R$ 187 milhões para recuperar esse trecho percorrido pela reportagem.

VELOCIDADE

De acordo com dados de uma pesquisa da consultoria Bain & Company, o país tem apenas 14 mil quilômetros de estrada realmente de qualidade, vias de mão dupla, com acostamento e sinalização, chamadas de autoestradas. Isso significa menos de um décimo do total de vias americanas e chinesas nessa condição, outros dois países com grandes territórios.

Para dirigir na pior estrada do Brasil, os caminhoneiros contam que precisam andar em baixa velocidade por vários quilômetros. Estão sujeitos a freadas bruscas a qualquer momento, fazendo com que o consumo chegue em média a 1,4 quilômetros por litro – é possível fazer até 2,2 quilômetros por litro numa estrada de boa qualidade.

As freadas podem acontecer a qualquer momento já que são raras as placas na rodovia.

Num trecho da TO-040, próximo à cidade de Novo Jardim, uma descida termina com um trevo com duas curvas em 90 graus. Sem qualquer sinalização, as opções para quem não conhece são a freada brusca ou a passagem em linha reta diretamente para dentro do terreno do comerciante Genivaldo Oliveira de Araújo.

“Tem dia aqui que a gente tira um caminhão debaixo do outro”, relata o dono da pequena mercearia à beira da estrada.

Há 18 anos morando ali, Genivaldo diz que nunca viu a estrada ter uma conservação adequada. Nos últimos cinco anos, o trecho esteve sempre classificado entre as cinco piores, embora o governo do Tocantins diga que as vias receberam melhorias e estão “em bom estado”.

As melhorias, na verdade, são remendos nos buracos do pavimento que ocorrem ano sim, ano não. Em trechos da TO-040, é possível ver de duas a três diferentes camadas de asfalto sobre a outra, criando calombos que os caminhoneiros apelidaram de “buracos para cima”.

A via é usada principalmente por caminhões que vão com adubo da Bahia e os que voltam com calcário e grãos produzidos no Tocantins.

Dirceu Delatorre, que tem duas fazendas no Tocantins, diz que seus sete caminhões deixariam de ter custos até 20% maiores por transitar na região.

Um dos seus motoristas é Noé Rodrigues, 65 anos, dirigindo caminhão desde 1978. Orgulhoso, mostra sua nova Volvo 540 I-Shift, com câmbio automático de 12 marchas. Mas, na hora de partir para a rodovia, o sentimento é a lamuria.

PERDAS

Só o setor agrícola brasileiro desperdiça R$ 3,8 bilhões, segundo a estimativa da CNT, apenas com o transporte dos 66 milhões de toneladas de milho e soja por rodovia (o que inclui estradas não asfaltadas). Isso colabora para que o custo para transportar a produção no Brasil sejam entre o dobro e o triplo da média americana, por exemplo.

Quando esses produtos usam caminhão para distâncias acima de mil quilômetros, o transporte pesa ainda mais no custo, tornando o produto menos competitivo.

“Dá até pena botar um caminhão novo assim numa estrada dessa”, diz o caminhoneiro, lembrando o preço de R$ 375 mil da máquina.

Na região do Matopiba, que abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, essas perdas são ainda mais significativas já que elas estão distantes mais de mil quilômetros dos portos. É nessa área que a pior ligação passa.

Por causa do contínuo aumento das lavouras de soja, milho e algodão na região nas últimas duas décadas, o governo decidiu fazer dois projetos ferroviários tentando reduzir custos de transportes e, assim, incentivar mais produção.

Uma década se passou e nem a extensão da Ferrovia Norte-Sul até São Paulo e nem o Ferrovia Oeste-Leste, de Barreiras (BA) a Ilhéus (BA), estão funcionando. A nova previsão da Valec, estatal responsável, é 2018.

Já foram gastos mais de R$ 10 bilhões, parte deles perdida em superfaturamentos e outros prejuízos, e o pouco que ficou pronto não funciona adequadamente.

No caso da região do Tocantins, as cidades próximas ao trecho da pior rodovia poderiam utilizar mais facilmente a Norte-Sul como via de escoamento até o porto. Para isso, o projeto original previa pátio para depósito e transbordo de mercadorias em Porangatu (TO). A Valec pagou R$ 11 milhões em equipamentos para sua construção, mas o pátio nunca ficou pronto.

“A gente tinha muita esperança nessas linhas”, diz a fazendeira Carminha Missio, presidente do Sindicato Rural de Luis Eduardo Magalhães.

Sem a opção do trem, o caminhão vira a saída para tudo. No caso do calcário, um produto de alta densidade, a mercadoria deve ser colocada só até o meio da caçamba para que o peso não fique acima do permitido para a estrada. Se o peso está além do máximo, mais chance da estrada ser destruída.

A balança no posto de fiscalização na fronteira entre os dois estados está quebrada desde novembro, sem perspectiva de voltar a funcionar porque o contrato com a manutenção foi encerrado. Fiscais que trabalham no posto contaram que caminhões passavam nitidamente acima do peso, o que piora ainda mais a rodovia.

Dono de uma frota de caminhões em Dianópolis (TO), a cidade no meio do caminho do pior trecho rodoviário do país, Evandro Mokfa conta que os custos a mais com sua frota acabam se refletindo nos preços. E nem chegam a ser todos repassados aos consumidores.

A NTC&Logística, maior entidade do setor de empresas de transporte por caminhão, faz semestralmente pesquisa em que aponta que as empresas recebem entre 9% e 21% menos que os custos mínimos necessários para a atividade. A crise aprofundou os números.

Quando conversou com a reportagem, o caminhoneiro João Batista de Souza estava há seis dias esperando por carga num posto de gasolina em Luis Eduardo para um frete para Fortaleza. Segundo ele, os valores caíram de R$ 160 a tonelada para R$ 150 em duas semanas. Há um ano, passava de R$ 200.

Perguntado porque aceita preços que, segundo ele, nem chegam a pagar seus custos e o diesel numa estrada como a via até Natividade, o caminhoneiro se resigna: “O caminhão está aí. Não tem como ficar parado”.

 

BAIUCHOS

Para compensar os preços mais altos de frete, as atividades precisam de uma rentabilidade elevada, o que limita o crescimento. Luis Eduardo, onde as terras são amplas e é possível plantações em grandes extensões, cresce em média três a cinco vezes mais que as cidades mais ao fim do trecho, no estado do Tocantins, segundo dados do IBGE.

Natividade, uma das pontas do trecho pesquisado, é a cidade mais antiga do Tocantins, fundada em 1734 por Bandeirantes em busca de ouro. A região de rios de águas cristalinas chegou a ter 40 mil escravos vindos do litoral da Bahia pela mesmo caminho que hoje é a pior ligação rodoviária do país.

Os escravos deixaram como herança a inconclusa Igreja para Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que levou o Iphan em 1997 a declará-la Patrimônio Histórico.

Assemelhada a outras cidades do ciclo do ouro como Paraty (RJ), Goiás Velho (GO) e Tiradentes (MG), Natividade teria o turismo como opção para o desenvolvimento. Mas os próprios moradores são céticos quanto a poderem receber visitantes.

“Meu sobrenome aqui é ´louca´”, diz Cirene Coelho, presidente do Conselho Municipal de Turismo sobre como é encarada ao falar sobre trazer turistas para a cidade.

Cirene reclama das notas dadas à estrada, mas não sabe quantos visitantes chegam à noite da região da Bahia em seu hotel por medo de parar na estrada. A viagem de 250 quilômetros, a depender do período, pode durar mais de cinco horas.

“Se dá um problema, vai ficar onde se nem acostamento tem?”, reclama.

Sem turismo, com terrenos de menor produtividade e mais distante dos portos que sua concorrente, Natividade perdeu 13% de suas empresas num período de 10 anos e vai vivendo da prefeitura, assim como a maioria das cidades brasileiras.

A vizinha Luis Eduardo Magalhães, antiga Mimoso do Oeste, tem 30 anos como município. Carminha Missio, a presidente do Sindicato Rural da cidade, conta que o pai, Amélio Gatto, chegou em 1979 (quando a região ainda pertencia a Barreiras) apenas com um carro velho, que ficou de entrada para a compra de um terreno.

A área era dezenas de vezes maior que a pequena chácara onde ele, a esposa e 10 filhos teriam que prover o futuro de todos na pequena cidade gaúcha de Espumoso.

Chamados de “Baiuchos”, eles precisaram construir os caminhos de terra com tratores, dormir sobre caminhões e estocar alimentos em banha de porco para não passarem fome devido ao isolamento.

A chegada das estradas asfaltadas, conta Carminha, ajudou no crescimento da região, agora uma das mais ricas do Nordeste. O PIB per capita é de R$ 50 mil, quase o dobro do brasileiro. Mas a rodovia parou no tempo: é a mesma de 2006, quando havia 5 mil carros na cidade que hoje tem 40 mil, o que levou a seu esgotamento e, consequentemente, aos acidentes.

Segundo dados da polícia local, foram 110 acidentes no ano de 2015, quase um a cada três dias. Neles, morreram 12 pessoas. Em outro trecho de 157 quilômetros da BR-242, que corta a cidade e vai até Barreiras (BA), mais 110 acidentes, com 13 mortos.

Anos atrás, a vítima foi Amélio Gatto, o pai de Carminha. Com voz embargada, ela diz o que pensa sobre as estradas na região: “são, basicamente, assassinas”.

Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO

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