A jornada é longa. São quilômetros e quilômetros rodados diariamente sem, na maioria dos casos, alguém do lado. Se o motorista escuta algo interessante no rádio, não há com quem comentar. Se ele ouve uma música antiga, não há com quem relembrar. Se o caminhoneiro vê curiosidades na estrada, não há com quem compartilhar. Se o profissional descobre os lugares mais lindos do Brasil, fica com as imagens e prazeres só para ele. É nesse ambiente que o caminhoneiro vive dia e noite. Nada de ter alguém para conversar ou uma companhia para dizer ao menos um “bom dia”.
“O volante do caminhão se torna seu maior companheiro. É nele que o motorista chora, ri, canta, fica em silêncio, pensa na vida, sente a liberdade. É você e Deus na cabine do caminhão”, revelou Viviane Gonçalves, enquanto dirigia.
A saudade de casa existe, mas os motoristas contam que aprendem a conviver com ela – já que não há outra escapatória.
A caminhoneira disse que não consegue ficar longe da boleia, então já aprendeu a lidar com a saudade da família. Hoje, já não acha tão difícil, pois, na verdade, não consegue ficar em casa nem nas férias. Ela explica que precisa estar em atividade o tempo todo, então fica cozinhando ou como ela mesma diz “inventando coisas na cozinha”, quando está na casa da mãe ou da sogra durante os dias de folga.
Para Márcio Roque a situação já é um pouco diferente. Ele disse sentir falta de passar mais tempo em casa com a família. Ao mesmo tempo, revelou que a saudade é boa para os momentos de reencontros, pois faz com que percebam como é bom quando os amigos e familiares estão juntos. “Se ficamos muito tempo juntos já começamos a brigar, então é bom ficarmos longe, assim, quando chego, ficamos bem”, explicou tímido.
A viagem foi feita no mês de julho, período de férias escolares, e por isso foi possível perceber famílias viajando pelas estradas. Yaisa Nayara Silva é dona de casa e mãe de três meninas. O marido dela é caminhoneiro e todas as férias deixa as filhas viajam com o pai.
“Elas adoram, ficam ansiosas pelos dias de férias. É difícil quando não tem chuveiro nas paradas. Aí preciso esquentar água no fogão do caminhão e dar banho na banheira. Mas esse é um momento importante para nós. Eu e as meninas sentimos muito a falta dele em casa e ele sente a nossa.Saudade é uma coisa que aperta, sabe? Então nesse período é tudo festa”, contou Yaisa.
João Victor, de 4 anos, mexia nas rodas do caminhão a todo momento enquanto a mãe Luciana Josino Bezerra o vigiava de longe. Enquanto isso, o pai, caminhoneiro, José Ribeiro Bezerra, arrumava o caminhão. Podia-se observar de longe a alegria do garoto em volta do veículo, comprovada pela mãe, que contou sobre o sonho de João ser caminhoneiro. Perto das férias, sabendo que viajará com o pai, o menino não consegue dormir de tanta ansiedade. “Ele conta os dias e as horas para o dia de viajar de caminhão. As brincadeiras em casa são sempre com caminhões. A gente aguarda com carinho por esses dias, porque aí a família consegue ficar junta”, contou Luciana.
Caminhoneiro há 27 anos, João Ricardo Duarte, disse que a distância já o fez perder grandes momentos ao lado do filho. “Era aniversário de 18 anos dele. Me programei a semana toda para que no dia do aniversário eu conseguisse estar em casa. Mas um dos carregamentos atrasou e fiquei preso no porto. Meu coração rasgou quando vi que não daria mais tempo de comemorar os 18 anos do meu filhote. É nosso trabalho, a gente sabe, mas é difícil aguentar.”
A tecnologia tem ajudado nesse sentido. Depois do Whats’App ficou mais fácil amenizar a saudade. “Eu ligo todo dia para os meus filhos com o ‘zap’. Assim consigo ver meus netinhos. Eu já vi o Miguel andando pelo vídeo. Só assim para o coração do vô aguentar a saudade. Antes era muito difícil, até para mandar carta era complicado. Hoje é bem mais fácil e isso melhora o nosso contato com a família. Como eu só volto pra casa uma vez no mês, isso tudo é muito importante. Desse jeito me sinto perto, mesmo longe”, explicou Edson Aparecido, caminhoneiros há 40 anos.
Cuida de mim
Nada de academia, parar para alongar e muito menos se lembrar de comer de três em três horas. Os que têm sorte são liberados pela empresa para colocarem uma minigeladeira no caminhão graneleiro, ao lado da cozinha do caminhão – como é o caso do casal da reportagem. Se o caminhão for tanque, por segurança, não é permitido ter essa cozinha no veículo. Assim, quando não tem como fazer a própria comida, o caminhoneiro precisa parar para comer e, nem sempre, a situação do local de parada é das melhores.
Para os 9 dias de viagem, Márcio e Viviane fizeram uma compra antes de saírem de Maringá (PR). Tudo era guardado em uma pequena despensa embaixo do caminhão. As carnes acabaram antes do fim da viagem e uma nova compra foi feita em Paranaguá (PR).
“A gente evita comer fora. Primeiro porque costuma ser muito caro e, se a gente não cuida, depois não sobra dinheiro. Segundo porque podemos passar mal com a comida. Tem comida que não é de qualidade e aí já era. Não dá para passar mal dirigindo, não sabemos quando vamos conseguir parar em um banheiro. Então fazemos tudo no caminhão. Café da manhã, almoço e janta”, explicou a caminhoneira.
De acordo com pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (FSP), da USP, em 2016, 70% dos caminhoneiros entrevistados estavam acima do peso. Além disso, os estudos ainda apontaram a relação do consumo do carboidrato com o aumento da sonolência, sendo esse tipo de alimentação a mais comum entre os motoristas de caminhão.
O problema de saúde ainda vai além. Quando surge alguma dor, dificilmente o caminhoneiro consegue ir para o hospital ou marcar uma consulta com especialistas, pois não sabe exatamente se estará na cidade para o atendimento. Logo, ou adia a ida ao médico, ou começa a tomar remédios por conta própria, colocando em risco a própria vida.
“Estou há meses com essas manchas e irritações vermelhas da pele. Não sei o que é. Já comprei algumas pomadas, mas teve uma que até piorou.”, contou Viviane.
Marcio já passou apuros ao passar mal na estrada. “Longe de todo mundo, não tinha o que fazer. Estava com febre, passando muito mal e sem remédios de emergência. Parei o caminhão e fiquei ali no acostamento esperando melhorar. Foi terrível. Me senti sozinho demais e até com medo de ser algo mais sério e não conseguir dirigir até um médico. A estrada onde eu estava era distante das cidades e em um lugar precário no Mato Grosso. Graças a Deus melhorei, se não, nem sei o que tinha acontecido comigo.”
Anfetamina, o rebite
O “tic tac” do relógio não para. Às vezes até parece que corre mais rápido quando tem carga para entregar. Na acelerada “corrida contra o tempo”, nem sempre as leis incentivam o descanso do caminhoneiro. Em vigor desde 2015, a “Lei do descanso” ficou suspensa por um tempo e voltou a ser fiscalizada em março deste ano. Ela permite que o caminhoneiro dirija por 5h30 seguidas e, depois, descanse 30 minutos. Ou seja, a determinação é de que nas 24 horas do dia, é preciso descansar por 11 horas, sendo 8 horas seguidas e as outras 3 horas podem ser fracionadas.
Uma pesquisa divulgada neste ano pela USP aponta que com a “Lei do Caminhoneiro”, foi reduzido o número de horas trabalhadas pelos motoristas (cerca de 1 hora). Logo, um dos efeitos dessa medida foi a diminuição do rendimento mensal desses profissionais em aproximadamente R$ 70.
A situação complica mesmo quando o assunto é infraestrutura. O país não oferece os serviços básicos necessários para que a lei seja cumprida. Durante a viagem, os motoristas procuraram por horas lugares seguros para estacionar e dormir. Mas não encontravam postos acessíveis e com segurança. O risco de parar em um lugar assim é grande, principalmente com caminhão carregado.
“É complicado parar em qualquer lugar. Tem ‘noias’ que ficam pedindo dinheiro a noite toda e se a gente não der é perigoso eles quebrarem o vidro ou retrovisores. Não dá pra dormir direito. Em alguns postos ainda têm as prostitutas. Elas ficam batendo no caminhão oferecendo ‘serviço’. É muito difícil conseguir descansar desse jeito para trabalhar no outro dia. Então precisamos rodar mais para achar um lugar melhor para parar. O problema é que falta e os poucos que têm pedem dinheiro para posar lá ou tomar banho. A gente quer e precisa descansar, mas tem vez que é quase impossível”, desabafou Viviane.
É perceptível, de fato, a falta de infraestrutura nas paradas dos caminhoneiros. Depois de um dia inteiro viajando, passaram quase 3 horas procurando um lugar para dormir, em Santa Catarina. Ao chegar no posto, para tomar um banho de cinco minutos (cronometrados, pois depois o chuveiro desliga automaticamente) era preciso pagar R$ 12 reais – mesmo com água gelada.
“É complicado, sabe? Tudo é muito caro na estrada e o valor do frete não tem compensado como antes. A gente tem que trabalhar cada vez mais e ganhar menos. Quando viajamos para os lugares que conhecemos é mais fácil. Aí já sabemos os lugares de paradas boas e seguras. Mas quando pegamos rota nova, sempre ficamos com um ‘pé atrás’. É preciso cuidar de tudo e ficar atento. Alguns lugares só permitem a nossa parada se abastecermos 200 litros de diesel e como trabalhamos para uma transportadora, não podemos abastecer em qualquer posto. Aí tudo fica ainda mais complicado.”, explicou Márcio.
Quando alguns motoristas foram questionados sobre o uso de drogas para se manterem acordados nessas situações em que não podem dormir, disseram com tranquilidade sobre o uso da anfetamina, o rebite.
Na busca pelo lucro maior, o uso de drogas torna-se comum no cotidiano de muitos motoristas. Eles passam a usá-las para ficarem acordados durante as noites – indo além do que o corpo humano pode aguentar. Com a comissão em jogo, quanto mais o motorista consegue rodar na estrada, mais ele fatura. Por isso, vários deles não se importam com o que precisam tomar para se manterem “ligados”.
Depois de um dia inteiro rodando, nem sempre com pausas para comer, os olhos pesam e o corpo suplica pela cama. As costas doem incessantemente e as pernas incham. Mas é preciso lucrar, doa a quem doer, custe o que custar. É nessa hora que muitos motoristas recorrem aos rebites. Essa droga sintética estimula o sistema nervoso central, fazendo com o que o cérebro trabalhe mais rápido, deixando o corpo “acordado” e sem cansaço. Por isso, além do fácil acesso e preço, o rebite torna-se o “comprimido dos caminhoneiros”.
“Você fica bem acordado na hora. Mas depois que passa o efeito o sono pesa bem mais. Se não parar é perigoso dormir no volante”, revela Márcio.
O que muitos deles ignoram é que o rebite pode causar alucinações, fazendo com o que os motoristas percam o sentido e causem acidentes no trânsito. Além disso, a anfetamina causa dependência, pode mudar o humor da pessoa ou deixá-la deprimida na falta da droga.
O casal Viviane e Roque disse que já tinham tomado o comprimido para ficarem acordados. Ela explicou que se arrependeu de usar o rebite devido às consequências que o corpo dela sofreu, como a queda de cabelo e os problemas nos dentes.
De acordo com a caminhoneira, a droga parece realmente mágica, pois dá a impressão de que “tira com a mão” todo o cansaço do corpo – de forma muito rápida. Mas confessou que precisou parar o caminhão em uma das vezes que usou a droga, devido às alucinações.
“Acho que tomei uma dose forte e comecei a ver os carros vindo à minha direção. Os faróis pareciam ir para frente e para trás, achei que iam vir em cima de mim. Percebi que não estava bem e liguei para meus amigos, eles recomendaram que eu parasse o caminhão até o efeito passar”, revelou.
De acordo com Viviane, para adquirir o rebite o caminhoneiro não precisa sair do caminhão. A venda é feita nas estradas, pela janela do veículo. “É muito fácil conseguir, o caminhoneiro nem precisa ir atrás, a droga vai até ele. Eles batem na nossa porta e dizem: ‘tenho da boa hoje, vai querer ‘motô’?’”, contou.
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