Ex-caminhoneira decora carro para matar saudade da profissão

Silsa, que hoje trabalha como Uber, decorou o carro de forma a se lembrar da antiga “boleia” | Bruna Barbosa/MidiaNews

Silsa Machado, que percorreu estradas do país por 10 anos, hoje trabalha como motorista da Uber

O carro de Silsa Cecília Machado, de 50 anos, chama a atenção pelas ruas de Cuiabá, por conta do “chinil” – capas de tecido felpudo que protegem os bancos e o painel de um caminhão – que ela usa para proteger o estofado do veículo.

A mulher, que atualmente trabalha como motorista da Uber, na Capital, conta que resolveu decorar o veículo para matar a saudade da cabine do bitrem que dirigiu por por dez anos, quando trabalhava como caminhoneira.

Silsa era conhecida nas rodovias do país como “Chapeuzinho Vermelho”, apelido dado pelos caminhoneiros que ela conheceu durante suas viagens. Ela explica que todo motorista de caminhão tem seu “código”, chamado de QRA.

“Na estrada não temos nome, somos conhecidos pelo nosso QRA, que é um apelido que eles colocam. ‘Rapunzel’, ‘Mel’, ‘Sol’, ‘Sombra’ e ‘Guerreiro’ foram alguns de meus colegas caminhoneiros”, lembra.

O apelido veio de uma boneca da personagem chapeuzinho vermelho, que Silsa achou durante uma de suas viagens e colocou no painel de seu caminhão para enfeitá-lo.

“Uma vez tentaram trocar meu apelido para ‘Pantera Cor-de-Rosa’, porque era muito vaidosa, estava sempre maquiada e de unhas feitas no caminhão. Também levava um sapato de salto, que usava quando fazia parada nos postos”, relembra.

Interior do carro de Silsa, qeu atuou como caminhoneira por 10 anos|
Bruna Barbosa/MidiaNews

Vida de caminhoneira

Desde criança, Silsa sonhava em dirigir “aquela coisa grande”, como lembrou de se referir ao caminhão na infância. Ela conta que costumava brincar com caixotes usados para transportar uvas, a fim de “construir” seu próprio caminhão.

“Usava dois caixotes de uva, colocava um pau de vassoura entre eles e aquele era o meu caminhão, mas naquela época nem sabia que existia ‘o tal do bitrem’”, lembra.

Orgulhosa, Silsa mostra a carteira de trabalho, onde a trajetória dela até a boleia do caminhão ficou registrada.

Os primeiros passos em direção ao grande sonho foram dados em 1996, quando ela conseguiu um emprego como taxista na Capital. No ano seguinte, trabalhou no Projeto Buscar, também em Cuiabá, onde era responsável por levar e buscar pessoas com deficiência motora, mental e múltipla.

Ela conta que a oportunidade foi essencial para adquirir experiência comprovada como motorista.

Dois anos depois, Silsa foi contratada pela Sol Bus Transportes, empresa de ônibus da Capital, onde trabalhou por três anos.

“Fiquei três anos me dedicando, aprendendo a manobrar os ônibus no pátio. Trabalhava o dia todo e ficava até às 1h, mais ou menos, manobrando os carros. Depois trabalhei mais dois anos na Cantinho Lotação, onde fui motorista da linha Pedra 90”, conta.

Como a rotina de motorista de ônibus era estressante, Silsa decidiu retornar ao sonho de dirigir um caminhão pelas estradas do Brasil.

Na primeira oportunidade como caminhoneira, a mulher era responsável pelo transporte de diesel em uma empresa de combustíveis.

Aquele seria o primeiro ano de uma década em que Silsa se dedicou a transportar os mais diversos carregamentos, subindo e descendo as serras do país.

Pioneira, ela foi a primeira mulher a ser contratada pela Usina Itamarati, onde ficou durante uma safra de cana-de-açúcar, dirigindo os “reboques gigantes” da empresa.

Silsa também realizou o sonho de dirigir um bitrem, onde costumava carregar soja, milho, pluma, caroço, arroz, feijão, couros e produtos químicos.

Silsa tem orgulho dos registros em sua carteira de trabalho: ela conta ter sido a primeira mulher motorista na Usina Itamarati | Bruna Barbosa/MidiaNews

Mulheres na estrada

A mulher de 1,50m de altura, cujo grande sonho era tornar-se gigante na cabine de um caminhão, também compartilhou a vivência nas estradas com outras mulheres. Silsa conta que, há dez anos, existia pouca presença feminina na profissão.

De acordo com dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), que ouviu 1.066 mil caminhoneiros em 2019, apenas 0,5% dos motoristas de caminhão são mulheres.

“Éramos 40 naquela época. Umas foram casando, outras foram deixando a profissão. Muitas não se adaptavam ao serviço, porque não era apenas dirigir o caminhão, tem a logística, a mecânica e etc”, contou.

Certa vez, Silsa descobriu que um de seus patrões tinha a prática de pagar um salário maior para os motoristas homens. Como era a única mulher da empresa, Silsa descobriu o fato apenas oito meses depois.

“Um dia, carregando o caminhão em um lugar, um senhor me falou. Descobri que meu chefe pagava 11% de comissão para mim, enquanto os motoristas homens recebiam 13%”, lembrou.

Mesmo ganhando menos, Silsa costumava trabalhar mais que os homens, além de ter aprendido a consertar e entender a mecânica do caminhão.

“Ele [ex-patrão] chegou a dizer uma vez que, se tivessem mais cinco mulheres como eu, poderia mandar todos os outros motoristas embora. Trabalhava muito, mas mesmo assim fui enganada”, contou.

Relação com a família

“Cadê seu marido?” também era uma das frases mais ouvidas por Silsa quando parava em algum posto de gasolina para abastecer ou descansar.

Segundo ela, os homens não entendiam como a mulher, que descia da cabine com seu salto alto e maquiagem no rosto, ocupava a mesma profissão que eles.

Silsa também se define como uma mãe independente, já que ela e o ex-marido se separaram quando suas duas filhas ainda eram pequenas. Sustentar a família também foi um dos motivos que fizeram com que ela se dedicasse ainda mais a sua profissão.

“Precisava ganhar dinheiro para criar minhas duas filhas. Separei cedo e fui viver minha vida. Tive ajuda apenas da minha mãe, também nunca fui atrás dele [do ex-marido] para pedir pensão”, conta.

A motorista também desmente a “fama” da profissão, de afastar o caminhoneiro de casa e da família por meses.

“Caminhão não fica longe, quem fica longe é o motorista. Todo final de semana estava em casa para ver minha mãe e minhas filhas”, lembra.

Viagens de Silsa

A ex-caminhoneira, que largou a profissão há apenas cinco anos, relata que já desbravou a maioria das serras do Brasil. Apesar de se definir como corajosa, ela conta que a Serra das Araras (RJ) foi uma das que mais teve medo de dirigir.

“As curvas são extremamente íngremes, muita gente já morreu lá [na Serra das Araras]. A estrada é tão fechada que não tem condição de descer com os reboques, apenas com o ‘cavalinho’, onde fica a cabine do motorista”, explica.

Em uma das viagens, há oito anos, Silsa chegou a transportar couro para Santiago, no Chile. Ela se lembra até hoje do medo que sentiu ao achar que perderia os pés por conta do frio intenso que fazia no país.

Ela diz que a rotina do caminhoneiro é tomada pela correria de carregar e descarregar o caminhão. Silsa, por exemplo, já chegou a dirigir 3.800 mil km em dois dias e meio.

“Eu era uma mulher que vivia correndo, não parava. Só parava para fazer o café, cozinhar um miojo e voltar para a cabine do meu caminhão. Até aprendi a urinar em um penico, pois muitas vezes não dava para parar”, lembra.

Na estrada, a mulher disse ter apenas a companhia de Deus, por isso nunca esperou pela ajuda de outras pessoas.

Certa vez, ela dirigia em direção a Mineiros (GO) quando percebeu que alguma coisa na mecânica do caminhão estava errada.

Era de madrugada e a pista estava molhada por conta de uma chuva que caía naquele dia.

“A turbina do caminhão estourou, mas não percebi. Só entendi o que estava acontecendo quando fiz uma curva e vi o fogo na parte de trás pelo retrovisor”, diz.

Ela tentou pedir ajuda pelo rádio, meio de comunicação usado pelos caminhoneiros nas BRs, mas não obteve resposta de nenhum dos colegas. Foi quando decidiu pegar um extintor e apagar o fogo por conta própria.

“Gastei todo o extintor e não consegui apagar o fogo. Pedi ajuda para quem passava na estrada, mas o único que parou foi um motorista de ônibus. Não esqueço nunca, o fogo já estava alto”, lembra.

O homem emprestou mais dois extintores para Silsa, porém, o esforço não foi suficiente para apagar o fogo. O motorista prometeu seguir viagem até Mineiros (MG) e acionar o Corpo de Bombeiros do município para socorrer Silsa.

“Ele só me disse para tirar tudo de dentro e sair de perto, porque o caminhão explodiria. Fui para longe e fiquei olhando aquele fogo, pedi ajuda para Deus. Quando Ele tocou meu coração, decidi tentar usar a areia das casas de tatus”, relembra, enquanto mostra os pelos arrepiados nos braços ao lembrar-se da história.

Em um dos momentos, após não conseguir apagar o fogo com a areia, como havia imaginado, Silsa conta que chegou a reclamar com Deus por não ter a força de um homem.

A mulher ainda lembra que a ajuda do Corpo de Bombeiros chegou apenas quatro horas depois.

Silsa relata, também, já ter visto dezenas de caminhões tombarem ou se chocarem de frente, causando acidentes trágicos que não saem da memória dela até hoje.

“Tem cruz por todo lado nas estradas, já vi muita morte. O ‘tombo’ do caminhão é muito feio, são poucos que saem vivos. Já vi dois caminhões baterem de frente e explodirem na Serra da Petrovina (MT)”, disse.

Rebite, a droga dos caminhoneiros

Depois de oito anos de profissão, Silsa conheceu o rebite. Ela conta que, apesar de ter se recusado a usar a substância no início, o cansaço e necessidade de ganhar mais dinheiro fizeram com que ela usasse a droga durante dois anos.

O rebite é uma substância estimulante à base de anfetamina, que age no sistema nervoso central, além de atuar na aceleração das funções cerebrais.

Ao usar a droga, os caminhoneiros conseguem ganhar mais tempo em suas viagens, pois o rebite causa uma falsa impressão de diminuição da fadiga.

Silsa, por exemplo, diz que chegou a ficar sete dias sem dormir.

“Já estava beirando os 40 anos, meu corpo estava cansado, por isso decidi experimentar. Tomava dois comprimidos e não tomava mais, tentava ter um pouco de responsabilidade”, conta.

A mulher contou que, quando o efeito da anfetamina deixa o organismo humano, “o corpo chega a tremer”. Nessas horas, a única solução era deitar e tentar descansar, mesmo que não houvesse sono.

“Não podia ser irresponsável. Todo final de semana precisava voltar para casa para ver minha mãe e minhas filhas. Só usei para conseguir ganhar mais dinheiro”, afirma.

Depois que o pai de SIlsa passou a precisar de seus cuidados, após descobrir um problema de saúde, ela interrompeu as viagens para se dedicar a ele. Porém, foi a morte da mãe que fez com que ela colocasse um ponto final na vida de caminhoneira.

Os olhos de Silsa se enchem de lágrimas ao contar sobre a mãe, que costumava esperar na janela da casa onde viviam sempre que ela retornava de uma viagem.

“A morte da minha mãe me desestabilizou um pouco. Minhas filhas até me falam que não sou mais vaidosa como antes. Pensei até em mudar de casa, mas sempre vai ter uma janela que vai me fazer lembrar da minha mãe”, desabafa.

Da antiga profissão não restaram fotos, pois, sem saber lidar com as novas tecnologias, Silsa acabou perdendo as imagens que registrou durante os dez anos de profissão.

De lembraça, resta apenas a carteira de trabalho, onde exibe orgulhosa cada um dos passos dados para realizar o sonho de viver nas rodovias do país.

Fonte: Midia News

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