Trânsito: enfim uma grande notícia

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Folha de São Paulo de 7 de outubro último trouxe a notícia auspiciosa, em manchete de cinco colunas, na capa do seu caderno Cotidiano: “Rodovias paulistas têm redução recorde de mortes em acidentes”. Nos oito primeiros meses de 2015, as rodovias concedidas à iniciativa privada no Estado de São Paulo tiveram 21% menos mortes do que em igual período do ano passado. Em números absolutos, as mortes caíram de 722 para 572, ou seja, 150 pessoas deixaram de morrer nesses oito meses, geralmente jovens, com idade entre 15 e 39 anos, predominantemente do sexo masculino.

 Fenômeno semelhante aconteceu também na capital paulista. No primeiro semestre deste ano, segundo balanço da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), as mortes nas ruas e avenidas da cidade de São Paulo diminuíram de 637 para 519. Portanto, 118 pessoas (cerca de 19%) deixaram de fazer parte dessas estatísticas mórbidas.

 A primeira reação da imprensa foi atribuir esses resultados à crise. O encolhimento da atividade econômica faz com que menos veículos comerciais e de passeio circulem pelas ruas e estradas, reduzindo a densidade e o stress do trânsito e, por consequência, a probabilidade de acidentes. Mesmo quando acontecem, eles tendem a ser menos graves. Ao invés de mortes, ferimentos leves; ás vezes, apenas danos materiais.

 Embora isso seja verdade, é óbvio que esta única explicação não pode satisfazer a quem tem alguma intimidade com o tema. Já vivemos muitas crises, e nunca assistimos a reduções assim tão significativas na letalidade do trânsito, seja nas cidades, seja nas estradas. Portanto, a crise explica apenas em parte esse resultado animador. Outras causas (ou concausas) devem ser investigadas.

 Técnicos ouvidos, infelizmente, não ajudaram muito. Alguns reforçaram a redução do tráfego, principalmente de veículos pesados, como questão central. Outros lembraram as campanhas de conscientização de motoristas e de uso de cinto de segurança no banco traseiro. Outros ainda destacaram a melhoria da conservação das pistas e da sinalização, bem como o trabalho das equipes de socorro.

 Ninguém do setor de transportes foi consultado. Se fosse, talvez mencionasse o investimento extraordinário do TRC, de mais de US$ 10 bilhões por ano, batendo todos os recordes de aquisição de caminhões nos últimos 4 ou 5 anos: 152 mil unidades/ano, em média (v. neste blog, o artigo “Entendendo a bolha rodoviária”, de 25/05/15).

 O resultado disso é que circula hoje pelas ruas e rodovias uma frota de caminhões, pertencente às empresas de transporte, cuja idade média caiu para 9,5 anos. Há nas estradas uma grande quantidade de veículos de carga modernos, dotados de recursos tecnológicos que evitam acidentes e reduzem a sua gravidade.

 Além disso, os empresários do setor fazem um esforço gigantesco para se adaptarem à nova legislação que disciplinou a jornada de trabalho de seus motoristas, e os períodos obrigatórios de descanso. Isso eleva custos operacionais num primeiro momento, mas oferece condições mais humanas de trabalho e propicia uma operação mais segura, menos propensa a acidentes.

 Tudo me faz crer que essas inovações, promovidas e bancadas pelos empresários do TRC, são os principais fatores de redução da sinistralidade e da letalidade dos acidentes envolvendo caminhões. Isso ninguém se lembrou de dizer ao jornalista responsável pela matéria referida no início, nem ele se interessou em investigar.

 E há outras iniciativas, do próprio poder público, que também fazem diferença. As nossas estradas estão cada vez mais coalhadas de radares, com os quais não há acordo nem “carteirada” que resolva. Essas máquinas infernizam a vida dos motoristas, mas não há nada mais eficaz para controlar o excesso de velocidade. Melhor o radar do que o guarda escondido atrás da árvore, para surpreender e, às vezes, achacar. Não me comovo com o discurso fácil de quem pretende denunciar uma suposta “indústria da multa”. O que temos, sim, em escala industrial, é a cultura do desprezo às normas de trânsito, que só pode ser revertida pela certeza das punições pecuniárias, aplicadas com o uso de recursos tecnológicos modernos, de forma impessoal e inapelável.

 As grandes cidades também se renderam a esta solução. Em São Paulo, a Prefeitura adotou, além disso, a medida extremamente corajosa, porque impopular, de baixar a velocidade máxima permitida nas principais artérias da cidade. Estou convencido, desde o início, de que, embora tenha atraído estridente antipatia de grande parte da classe média motorizada, esta foi uma decisão a favor da vida. Os números agora revelados confirmam isso. E eu mesmo já pude comprovar, pessoalmente, o acerto desta medida.

 De fato, há pouco tempo, deixei de atropelar (e, talvez, de matar) um “nóia” que surgiu do meio do nada, na pista local da marginal do Tietê, tarde da noite, num trecho pouco iluminado, que não oferecia nenhuma conspicuidade à figura parda, e mais ainda enegrecida pela sujeira da pele, dos andrajos que vestia e de um cobertor encardido com o qual se protegia do frio. Ao perceber aquele vulto pulando a defensa metálica e tentando atravessar a avenida, quase desabando sobre o capô do meu carro, consegui frear e desviar o suficiente para evitar o atropelamento.

 A nova velocidade regulamentada para o local (50 km/hora), que eu tenho me esforçado para respeitar (e que já não me incomoda tanto quanto nos primeiros dias), salvou aquela pobre criatura. E também evitou que eu me envolvesse num acidente que me renderia, além de outros aborrecimentos, talvez um processo judicial por lesões corporais ou homicídio culposo – do qual muito provavelmente seria, a final, absolvido. Mas o sofrimento já estaria garantido, pelo fato de ferir gravemente ou, quem sabe, tirar a vida de um ser humano, ainda que involuntariamente.

 Numa outra frente, o Ministério Público do Trabalho vem notificando um grande número de empresas, não só de transporte, mas também grandes embarcadores, que foram identificados como contumazes responsáveis por excessos de peso em caminhões. Independentemente do pagamento da multa de trânsito correspondente, o MPT tem buscado a assinatura de TACs (termos de ajustamento de conduta), pelos quais as empresas se comprometem a abster-se dessa conduta, sob pena de multas elevadíssimas, que realmente as dissuadem de persistir no descumprimento da lei. Falta o DNIT cumprir a sua parte e implantar o vasto parque de balanças ao longo da malha rodoviária brasileira, anunciado inúmeras vezes e jamais  executado. Enquanto isso não acontece, a iniciativa do MPT, ainda que pouco ortodoxa e de legalidade duvidosa, vem cumprindo o papel de desestimular esta prática perversa e irracional de sobrecarregar os caminhões, na tentativa de compensar o aviltamento do frete por tonelada.

Ainda me lembro de quando, há muitos anos, eu dizia em artigos e palestras que era um milagre que morressem “apenas” 8 mil pessoas por ano em acidentes de trânsito envolvendo caminhões. Afinal, grande parte da malha rodoviária do país estava, naquela época, simplesmente intransitável (e ainda assim era transitada). A frota de caminhões era velhíssima, caindo aos pedaços e, geralmente, rodava com excesso de peso. Os motoristas, mal preparados, eram obrigados a cumprir jornadas desumanas para tentar atender a prazos impossíveis, e o faziam usando e abusando de substâncias químicas proibidas. Para completar, nos poucos trechos de estradas em que era possível desenvolver uma velocidade maior, geralmente em grandes retas, de dia e com tempo bom, os caminhoneiros eram levados a tentar tirar o atraso e aí provocavam os acidentes mais graves.

De lá para cá, foram tantas as iniciativas de inúmeros atores envolvidos nesses processos que, se é certo que ainda estamos longe do ideal, não é menos verdade que já evoluímos bastante em relação àquele quadro dantesco.

As estradas melhoraram muito, por força das concessões, dos recursos da CIDE, enquanto eles existiram, e de uma atuação mais competente dos órgãos rodoviários, tanto no plano federal, como em muitos estados, no tocante às rodovias que permaneceram sob gestão pública. As Pesquisas Rodoviárias anuais da CNT registraram essa melhora, progressivamente, até cerca de dois anos atrás, quando o DNIT voltou a ter problemas sérios de falta de recursos. E os estados também enfrentam restrições semelhantes. Ainda assim, o estado geral da nossa malha rodoviária, hoje, não pode sequer ser comparado com a situação catastrófica vivida nos anos 80 e 90.

A frota de caminhões, já o disse, modernizou-se, ainda que isso possa ter sido feito atabalhoadamente e ter produzido um forte desequilíbrio no mercado de transporte, gerando uma sobreoferta que foi agravada pela retração abrupta da demanda, por conta da crise.

Os caminhoneiros – autônomos e empregados – continuam a ser uma classe muito sofrida, mas atualmente têm direitos que antes não tinham, e contam com o apoio, por exemplo, do SEST/SENAT, presente no país inteiro, a oferecer uma vida mais digna a esses profissionais e a seus familiares.

Sempre denunciei os três excessos que matam: de peso, de velocidade e de tempo de direção. Eles continuam a existir, é certo, mas tem sofrido um combate cerrado por todos os lados, de modo que começaram a ser contidos e, por isso, ao lado das outras circunstâncias favoráveis que já mencionei, passaram a matar menos.

A redução recorde de acidentes e mortes no trânsito anunciada nos últimos dias não é um ponto fora da curva, mas, ao contrário, é o ponto que marca a inflexão dela. É a prova de que o caminho está certo e de que devemos perseverar nele.

Por Geraldo Vianna ( consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT)

fonte:Portal Ntc

 

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